domingo, 25 de maio de 2008

O Direito de Ocupação: a coletividade contra o Estado
Leonildo Correa -- Instituto OCW Br@sil
A essência deste texto é: a ocupação de órgãos, repartições e instituições públicas, por movimentos sociais legítimos, visando proteger direitos e interesses coletivos legítimos é um Direito e uma obrigação de quem defende o que é justo e pretensões das futuras gerações. Direitos e interesses legítimos da coletividade devem ser defendidos com todas as armas e todas as forças. Caso contrário sucumbiremos no autoritarismo e individualismo dos grupos dominantes.

O Direito de ocupação pode ser uma ação contra autoridades públicas negligentes, incompetentes ou burocráticas que, no exercício da função pública, emperram/atrapalham/impedem a realização da justiça social, defendem interesses particulares ou privados contra interesses coletivos, impedem a realização de projetos sociais de relevante interesse público. Contra estas autoridades a ocupação é um santo remédio.

O Direito de ocupação pode, também, ser uma reação contra arbitrariedades e ilegalidades perpetradas por administradores públicos no exercício da função pública. Também pode ser uma reação contra administradores que se esquecem ou ignoram que são apenas servidores/empregados da coletividade e usam a coisa pública como propriedade particular. Administradores que decidem enfrentar a maioria, praticando atos nocivos ao Direito e aos interesses coletivos. Também podem estar na iminência de praticar atos deste tipo.

Logo, a ocupação surge como uma forma de parar ou impedir estes administradores, nocivos para a coletividade e para os interesses públicos ou coletivos, de continuarem agindo e colocando em risco as conquistas sociais e coletivas.

Também vejo na ocupação uma forma de proteger direitos constitucionais, assim como direitos e interesses difusos. Nestes casos a ocupação é um remédio muito mais efetivo e eficiente do que os instrumentos jurídicos, pois a celeuma, geralmente, se resolve durante este ato, enquanto que o judiciário fica meses e anos discutindo a questão. Logo, para a proteção destes direitos e interesses, é melhor reunir a coletividade e ocupar do que esperar os remédios judiciais.

Por exemplo, uma empresa que lesa centenas/milhares/milhões de consumidores (empresa de telefonia, bancos, etc) pode ser ocupada até efetuar a reparação dos danos causados. Outro exemplo são as corporações que causam dano ao meio ambiente, afetando/prejudicando a vida de toda uma comunidade ou coletividade. Logo, esta comunidade ou coletividade pode ocupar a empresa, buscando a reparação, assim como a cessação imediata, do dano ambiental.

Mas o Judiciário não faz isto ? Certamente faz. Porém, o Judiciário, como disse anteriormente, é mais lerdo do que uma lesma. Sem contar que o judiciário é um órgão completamente dominado pela elite dominante (brancos ricos) e estes vivem fora da realidade social da maioria dos habitantes do país.

Portanto, um movimento social/coletivo que pleiteia e defende um direito legítimo tem autoridade para ocupar e obrigar as autoridades públicas, inclusive as autoridades do judiciário, a agirem a favor da coisa pública e da coletividade.

Entretanto, em alguns casos, o judiciário deve agir antes da ocupação. São os casos onde a legitimidade das causas que podem fundamentar uma ocupação é incerta e obscura. Também é o caso de existir incerteza entre o direito das partes envolvidas. Certamente, estes casos são vistos por todos e dividem as opiniões em ambos os lados. O que, por si só, inviabiliza uma ocupação, pois não há uniformidade entre os envolvidos na luta, logo, não há força para sustentar uma possível ocupação.

Porém, não há dúvida sobre a legitimidade dos índios quando pleiteiam, através da ocupação da FUNAI ou do STF, a restauração de suas reservas. Também não há dúvida sobre a ocupação do INCRA ou do Judiciário pelos Sem-terras que buscam celeridade nas desapropriações. Sabemos que os órgãos públicos, muitas vezes, agem lentamente, não porque a lei obriga, mas porque isto favorece a parte que não tem razão e que, certamente, perderá a causa. O uso de meios protelatórios e o favorecimento ilícito, assim como a corrupção, é muito comum dentro da burocracia estatal.

Além disso, o direito de propriedade não pode ser manejado contra uma ocupação legítima. Usar a reintegração de posse de prédios públicos ocupados por movimentos sociais legítimos, ao invés de atender a reivindicação do movimento ou resolver o problema que originou a ocupação, é dar razão para o mal, garantir a continuidade da injustiça social e promover a desagregação da supremacia da maioria e de direitos constitucionais.

Uma ocupação legítima mostra a coletividade agindo, em conjunto, para preservar e garantir a efetividade de direitos e interesses da maioria, algumas vezes direitos com fundamentos constitucionais.

Logo, o Judiciário, ao invés de dar liminares reintegrando a posse de prédios públicos ocupados por movimentos sociais legítimos que pleiteiam causas justas, deve condenar os administradores públicos negligentes por eventuais danos causados à coisa pública pela ocupação. Isto porque se fossem administradores diligentes, competentes, melindrosos com a coisa pública e preocupados em resolver os problemas sociais que estão ao seu alcance, não teriam a instituição que administram ocupada. Se querem evitar a ocupação da instituição que administram que sejam diligentes, competentes, melindrosos com a coisa públicas e preocupados com os problemas sociais.

A administração pública não é uma empresa privada. Na administração pública o lucro é dado pela eficiência social do órgão, quanto maior é a eficiência da organização, maior é o respeito social que ela alcançará. Logo, a possibilidade desta instituição ser ocupada é mínima.

Inegavelmente, o Direito de Ocupação é um Direito Coletivo, um Direito Social, uma forma dos cidadãos, agindo em conjunto, enfrentarem os administradores públicos e fazerem valer a vontade e os interesses da maioria, da coletividade, sobre o Estado. O Direito de Ocupação tornará a frase do filme "V de Vingança" uma realidade: O Povo não deve temer o Governo. O Governo é que deve temer o Povo.

Portanto, os movimentos sociais, assim como as organizações preocupadas em defender o interesse público, a Democracia e os Direitos da maioria contra arbitrariedades e ilegalidade do poder público, devem trabalhar para inserir, na Constituição e nas demais leis, o instrumento da ocupação. A Constituição e as leis devem reconhecer a ocupação como um Direito da coletividade contra o Estado, contra todas as esferas do Estado.

Certamente, a lei deve estabelecer os contornos que a ocupação deve ter. Deve ser uma ocupação responsável, moderada e por tempo determinado. Além disso, o administrador público que sofrer uma ocupação em sua instituição deve ser afastado e investigado. Caso seja provada a sua negligência e imperícia na administração da coisa pública e dos interesses coletivos deve ser demitido sumariamente ou retirado da gerência da instituição. O administrador público precisa temer uma ocupação e ver nesta um guilhotina para a sua cabeça.

Desta forma garantir-se-á "enforcement" (efetividade) à luta social, greves e protestos a favor dos Direitos da maioria, de interesses coletivos: emprego, salários justos e dignos, educação, saúde, cumprimento da lei, moralidade administrativa, etc.

Portanto, a minha pretensão, neste trabalho, é promover o Direito de ocupação como meio legítimo de ação contra arbitrariedades e ilegalidades perpetradas pela administração pública contra a maioria da população. Portanto, o Direito de ocupação em estudo refere-se a um ato da coletividade contra o poder público visando proteger interesses coletivos legítimos.

Logo, o Direito de ocupação analisado aqui não possui nenhuma relação com a ocupação de terras estatais, principalmente da região amazônica, ou invasão de reservas naturais e indígenas, por grileiros. A ocupação dessas terras, na maioria dos casos, são atos ilícitos. São atos criminosos.

Contudo, integra o Direito de Ocupação a entrada de trabalhadores sem-terra em latifúndios que não cumprem a função social ou ambiental. Não só a ocupação dessas terras, mas também a ocupação dos prédios do judiciário que, ao invés de resolver, com justiça, a situação pendente, prolonga, dolosamente, a celeuma.

Portanto, a ocupação típica, que defendo, é realizada por movimentos sociais legítimos, pleiteando uma causa legítima e justa.

Aos bacharéis de 1997 da Faculdade de Direito da USP
Prof. Fábio Konder Comparato
A vinda ao mundo de uma nova geração é sempre um espetáculo de renovada esperança na vitória da vida sobre a morte. A formatura de novos bacharéis de nossa Faculdade, no dia-aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos, é, da mesma forma, a esperança renovada de que o mundo da Justiça e da dignidade humana acabará, enfim, por prevalecer contra as forças da opressão, da desigualdade e da exclusão social.

Não posso, porém, entretê-los na ilusão. Os tempos são duros, frios, cruéis. Somos, todos, criaturas de um dos séculos mais opressivos e sanguinários da História. Um século em que o Estado totalitário, em suas várias modalidades - comunistas, fascistas ou fundamentalistas - comandou o extermínio de cerca de cem milhões de seres humanos, não como resultado de guerras externas, mas sim como bélica ao paroxismo da invenção e utilização das armas atômicas, cujos efeitos mutilantes e letais produzem-se de geração em geração, num cortejo de horrores.

Vivemos, também nós brasileiros, tempos duros, frios, cruéis.

Não me refiro, apenas, às dificuldades econômicas que já começam a se abater sobre nós, como conseqüência previsível da criminosa aplicação, pelos mais altos governantes da nação, de políticas temerárias, fundadas em abstrações ideológicas mal-assimiladas e pior executoras.

Quero referir-me, sobretudo, à difusão, de alguns anos a esta parte, em toda a sociedade brasileira, do sopro gélido do mais feroz egoísmo. Confunde-se, grotescamente, a comunidade política com uma sociedade mercantil. O objetivo último é o lucro e não o serviço público. A cidadania restringe-se aos proprietários e capitalistas. A soberania não pertence ao povo, mas aos detentores do poder econômico.

Segundo essa concepção mercantil da vida política, os ideólogos do individualismo liberal não cessam de intoxicar as novas gerações com a absurda idéia de que o bem-comum é naturalmente alcançado pela busca do ganho e das vantagens individuais, pelo exercício sem peias da rivalidade e da concorrência pessoal nos setores mais nobres da vida coletiva, pela substituição do bem-estar público pelo interesse privado, pela submissão do Brasil aos interesses hegemônicos do capitalismo internacional.

Ora, essa intoxicação moral de nossa juventude, naturalmente generosa, solidária e patriótica, constitui o mais hediondo dos crimes e a pior depravação dos costumes; aquela que, como bem advertiu o Evangelho, representa um pecado sem remissão.

Toda a nossa esperança, pois, repousa na capacidade de indignação dos jovens contra o cinismo, a crueldade e a corrupção das classes dirigentes. Num movimento oposto à lei biológica, é dos filhos que esperamos, neste crítico momento histórico, a regeneração dos pais; é a juventude que terá de assumir a colossal tarefa de reeducar as gerações mais velhas. Repito-lhes, mais uma vez, a advertência que Georges Bernanos fez aos jovens franceses, empenhados na resistência contra o nazismo e contra o comprometimento moral das elites com o invasor estrangeiro: "É a febre da juventude, disse ele, que mantém o mundo em sua temperatura normal. No dia em que os jovens perderem seu entusiasmo febril, o mundo inteiro morrerá de frio."

Os bacharéis da 165 turma da Academia de Direito de São Paulo estão em posição privilegiada para liderar a campanha de regeneração nacional. Eles sabem, com a intuição certeira da juventude, que a política interna deste País só conhece dois partidos: o partido do povo e o das classes dominantes. Eles sabem, como bem disse esse monumento vivo de brasilidade que é Barbosa Lima Sobrinho, que a política externa deste País também só conhece dois partidos: o de Tiradentes e o de Joaquim Silvério dos Reis.

É de vocês, queridos amigos, seguindo a mais límpida tradição das Arcadas, do CA XI de Agosto e de seu patrono perpétuo, o Professor Goffredo da Silva Telles Júnior, que há de vir o grande impulso de defesa do povo brasileiro perante os oligarcas de sempre; a grande revolta da Nação brasileira contra a dominação alienígena, apresentada como um fato inelutável da natureza, sob a idéia blandiciosa de globalização.

Dentro em pouco, vocês todos levantarão para proferir o juramento solene do bacharel em Direito. AO repetirem a palavra sublime de Justiça, pensem na dignidade eminente da pessoa humana, que é cotidianamente espezinhada entre nós, pela institucionalização da mais ignóbil desigualdade social de que se tem notícia no mundo contemporâneo.

Lembrem-se dos dados assustadores, confessados no relatório oficial brasileiro à Cúpula Mundial para o Desenvolvimento Social de Copenhague, em 1995. Enquanto, na década de 60, a renda apropriada pelos 10% mais ricos de nossa população era 34 vezes superior à renda apropriada pelos 10% mais pobres, atualmente essa proporção se eleva a 78 vezes, ou seja, mais do que dobrou em trinta anos.

Enquanto os 10% mais ricos da sociedade brasileira apossam-se, todos os anos, de metade da renda nacional, os 50% mais pobres são obrigados a se contentar com 12% dessa mesma renda, e os 10% mais pobres com menos de 1%. Lembrem-se de que, como confessa esse relatório oficial, um terço da população brasileira, isto é, exatamente 33%, estão abaixo da linha de pobreza, com uma renda per capita inferior a 60 dólares por mês.

Vivemos, na verdade, não uma simples crise de governo, mas uma profunda crise de regime político. A oligarquia de sempre já não tem condições de sobrevivência, e a tentativa absurda de fazer funcionar uma democracia sem povo é obviamente fadada ao fracasso. Vários sinais promissores nos indicam que o povo brasileiro está em vias de assumir e exercer o seu poder soberano, reivindicando a participação direta nas grandes decisões políticas. Para auxiliá-lo neste momento histórico revolucionário, é inevitável que o Povo recorra à competência e ao espírito cívico dos novos bacharéis em Direito.

Quando isto suceder, não tenho dúvidas de que esta turma das Arcadas responderá com entusiasmo e a uma só voz: - "Presente !".

Viva o Povo Brasileiro !

São Paulo, dezembro de 1997.

Carta aos Brasileiros
Prof. Goffredo da Silva Telles Júnior - 08/08/1977
Das Arcadas do Largo de São Francisco, do "Território Livre" da Academia de Direito de São Paulo, dirigimos a todos os brasileiros esta Mensagem de Aniversário, que é a Proclamação de Princípios de nossas convicções políticas.

Na qualidade de herdeiros do patrimônio recebido de nossos maiores, ao ensejo do Sesquicentenário dos Cursos Jurídicos no Brasil, queremos dar o testemunho, para as gerações futuras, de que os ideais do Estado de Direito, apesar da conjuntura da hora presente, vivem e atuam, hoje como ontem, no espírito vigilante da nacionalidade.

Queremos dizer, sobretudo aos moços, que nós aqui estamos e aqui permanecemos, decididos, como sempre, a lutar pelos Direitos Humanos, contra a opressão de todas as ditaduras.

Nossa fidelidade de hoje aos princípios basilares da Democracia é a mesma que sempre existiu à sombra das Arcadas: fidelidade indefectível e operante, que escreveu as Páginas da Liberdade, na História do Brasil.

Estamos certos de que esta Carta exprime o pensamento comum de nossa imensa e poderosa Família - da Família formada, durante um século e meio, na Academia do Largo de São Francisco, na Faculdade de Direito de Olinda e Recife, e nas outras grandes Faculdades de Direito do Brasil - Família indestrutível, espalhada por todos os rincões da Pátria, e da qual já saíram, na vigência de Constituições democráticas, dezessete Presidentes da República.

1. o Legal e o Legítimo

Deixemos de lado o que não é essencial.

O que aqui diremos não tem pretensão de constituir novidade. Para evitar interpretações errôneas, nem sequer nos vamos referir a certas conquistas sociais do mundo moderno. Deliberadamente, nada mais diremos do que aquilo que, de uma ou outra maneira, vem sendo ensinado, ano após ano, nos cursos normais das Faculdades de Direito. E não transporemos os limites do campo científico de nossa competência.

Partimos de uma distinção necessária. Distinguimos entre o legal e o legítimo.

Toda lei é legal, obviamente. Mas nem toda lei é legítima. Sustentamos que só é legítima a lei provinda de fonte legítima.

Das leis, a fonte legítima primária é a comunidade a que as leis dizem respeito; é o Povo ao qual elas interessam - comunidade e Povo em cujo seio as idéias das leis germinam, como produtos naturais das exigências da vida.

Os dados sociais, as contingências históricas da coletividade, as contradições entre o dever teórico e o comportamento efetivo, a média das aspirações e das repulsas populares, os anseios dominantes do Povo, tudo isto, em conjunto, é que constitui o manancial de onde brotam normas espontâneas de convivência, originais intentos de ordenação, às vezes usos e costumes, que irão inspirar a obra do legislador.

Das forças mesológicas, dos fatores reais, imperantes na comunidade, é que emerge a alma dos mandamentos que o legislador, na forja parlamentar, modela em termos de leis legítimas.

A fonte legítima secundária das leis é o próprio legislador, ou o conjunto dos legisladores de que se compõem os órgãos legislativos do Estado. Mas o legislador e os órgãos legislativos somente são fontes legítimas das leis enquanto forem representantes autorizados da comunidade, vozes oficiais do Povo, que é a fonte primária das leis.

O único outorgante de poderes legislativos é o Povo. Somente o Povo tem competência para escolher seus representantes. Somente os Representantes do Povo são legisladores legítimos.

A escolha legítima dos legisladores só se pode fazer pelos processos fixados pelo Povo em sua Lei Magna, por ele também elaborada, e que é a Constituição.

Consideramos ilegítimas as leis não nascidas do seio da coletividade, não confeccionadas em conformidade com os processos prefixados pelos Representantes do Povo, mas baixadas de cima, como carga descida na ponta de um cabo.

Afirmamos, portanto, que há uma ordem jurídica legítima e uma ordem jurídica ilegítima. A ordem imposta, vinda de cima para baixo, é ordem ilegítima. Ela é ilegítima porque, antes de mais nada, ilegítima é a sua origem. Somente é legítima a ordem que nasce, que tem raízes, que brota da própria vida, no seio do Povo.

Imposta, a ordem é violência. Às vezes, em certos momentos de convulsão social, apresenta-se como remédio de urgência. Mas, em regra, é medicação que não pode ser usada por tempo dilatado, porque acaba acarretando males piores do que os causados pela doença.

2. A Ordem, o Poder e a Força

Estamos convictos de que há um senso leviano e um senso grave da ordem.

O senso leviano da ordem é o dos que se supõem imbuídos da ciência do bem e do mal, conhecedores predestinados do que deve e do que não deve ser feito, proprietários absolutos da verdade, ditadores soberanos do comportamento humano.

O senso grave da ordem é o dos que abraçam os projetos resultantes do entrechoque livre das opiniões, das lutas fecundas entre idéias e tendências, nas quais nenhuma autoridade se sobrepõe às Leis e ao Direito.

Ninguém se iluda. A ordem social justa não pode ser gerada pela pretensão de governantes prepotentes. A fonte genuína da ordem não é a Força, mas o Poder.

O Poder, a que nos referimos, não é o Poder da Força, mas um poder de persuasão.

Sustentamos que o Poder Legítimo é o que se funda naquele senso grave da ordem, naqueles projetos de organização, nascidos do embate das convicções e que passam a preponderar na coletividade e a ser aceitos pela consciência comum do Povo, como os melhores.

O Governo com o senso grave da ordem é um Governo cheio de Poder. Sua legitimidade reside no prestígio popular de quase todos os seus projetos. Sua autoridade se apóia no consenso da maioria.

Nisto é que está a razão da obediência voluntária do Povo aos Governos legítimos.

Denunciamos como ilegítimo todo Governo fundado na Força. Legítimo somente o é o Governo que for Órgão do Poder.

Ilegítimo é o Governo cheio de Força e vazio de Poder.

A nós nos repugna a teoria de que o Poder não é mais do que a Força. Para nossa consciência jurídica, o Poder é produto do consenso popular e a Força um mero instrumento do Governo.

Não negamos a utilidade de tal instrumento. Mas o que afirmamos é que a Força é somente útil na qualidade de meio, para assegurar o respeito pela ordem jurídica vigente e não para subvertê-la ou para impor reformas na Constituição.

A Força é um meio de que se utiliza o Governo fiel aos projetos do Pov. Desgraçadamente, também a utiliza o Governo infiel. O Governo fiel a utiliza a serviço do Poder. O Governo infiel, a serviço do arbítrio.

Reconhecemos que o Chefe do Governo é o mais alto funcionário nos quadros administrativos da Nação. Mas negamos que ele seja o mais alto Poder de um País. Acima dele, reina o Poder de uma Idéia: reina o Poder das convicções que inspiram as linhas-mestras da política nacional. Reina o senso grave da ordem, que se acha definido na Constituição.

3. A Soberania da Constituição

Proclamamos a soberania da Constituição.

Sustentamos que nenhum ato legislativo pode ser tido como lei superior à Constituição.

Uma lei só é válida se a sua elaboração obedeceu aos preceitos constitucionais, que regulam o processo legislativo. Ela só é válida se, em seu mérito, suas disposições não se opõem ao pensamento da Constituição.

Aliás, uma lei inconstitucional é lei precária e efêmera, porque só é lei enquanto sua inconstitucionalidade não for declarada pelo Poder Judiciário. Ela não é propriamente lei, mas apenas uma camuflagem da lei. No conflito entre ela e a Constituição, o que cumpre, propriamente, não é fazer prevalecer a Constituição, mas é dar pela nulidade da lei inconstitucional. Embora não seja razoável considerá-la inexistente, uma vez que a lei existe como objeto do julgamento que a declara inconstitucional, ela não tem, em verdade, a dignidade de uma verdadeira lei.

Queremos consignar aqui um simples mas fundamental princípio. Da conformidade de todas as leis com o espírito e a letra da Constituição dependem a unidade e coerência do sistema jurídico nacional.

Observamos que a Constituição também é uma lei. Mas é a Lei Magna. O que, antes de tudo, a distingue nitidamente das outras leis é que sua elaboração e seu mérito não se submetem a disposições de nenhuma lei superior a ela. Aliás, não podemos admitir como legítima lei nenhuma que lhe seja superior. Entretanto, sendo lei, a Constituição há de ter, também, sua fonte legítima.

Afirmamos que a fonte legítima da Constituição é o Povo.

4. O Poder Constituinte

Costuma-se dizer que a Constituição é obra do Poder.

Sim, a Constituição é obra do Poder Constituinte. Mas o que se há de acrescentar, imediatamente, é que o Poder Constituinte pertence ao Povo, e ao Povo somente.

Ao Povo é que compete tomar a decisão política fundamental, que irá determinar os lineamentos da paisagem jurídica em que deseja viver.

Assim como a validade das leis depende de sua conformação com os preceitos da Constituição, a legitimidade da Constituição se avalia pela sua adequação às realidades sócio-culturais da comunidade para a qual ela é feita.

Disto é que decorre a competência da própria comunidade para decidir sobre o seu regime político; sobre a estrutura de seu Governo e os campos de competência dos órgãos principais de que o Governo se compõe; sobre os processos de designação de seus governantes e legisladores.

Disto, também, é que decorre a competência do Povo para fazer a Declaração dos Direitos Humanos fundamentais, assim como para instituir os meios que os assegurem.

Em conseqüência, sustentamos que somente o Povo, por meio de seus Representantes, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte, ou por meio de uma Revolução vitoriosa, tem competência para elaborar a Constituição; que somente o Povo tem competência para substituir a Constituição vigente por outra, nos casos em que isto se faz necessário.

Sustentamos, igualmente, que só o Povo, por meio de seus Representantes no Parlamento Nacional, tem competência para emendar a Constituição.

E sustentamos, ainda, que as emendas na Constituição não se podem fazer como se fazem as alterações na legislação ordinária. Na Constituição, as emendas somente se efetuam, quando apresentadas, processadas e aprovadas em conformidade com preceitos especiais, que a própria Constituição há de enunciar, preceitos estes que têm por fim conferir à Lei Magna do Povo uma estabilidade maior do que a das outras leis.

Declaramos ilegítimas as emendas na Constituição que não forem feitas pelo Parlamento, com obediência, no encaminhamento, na votação e promulgação das mesmas, a todas as formalidades do rito, que a própria Carta Magna prefixa, em disposições expressas.

Não nos podemos furtar ao dever de advertir que o exercício do Poder Constituinte, por autoridade que não seja o Povo, configura, em qualquer Estado democrático, a prática de usurpação de poder político.

Negamos peremptoriamente a possibilidade de coexistência, num mesmo País, de duas ordens constitucionais legítimas, embora diferentes uma da outra. Se uma ordem é legítima, por ser obra da Assembléia Constituinte do Povo, nenhuma outra ordem, provinda de outra autoridade, pode ser legítima.

Se, ao Poder Executivo fosse facultado reformar a Constituição, ou submetê-la a uma legislação discricionária, a Constituição perderia, precisamente, seu caráter constitucional e passaria a ser um farrapo de papel.

A um farrapo de papel se reduziria o documento solene, em que a Nação delimita a competência dos órgãos do Governo, para resguardar, zelosamente, de intromissões cerceadoras dos poderes públicos, o campo de atuação da liberdade humana.

5. O Estado de Direito e o Estado de Fato

Proclamamos que o Estado legítimo é o Estado de Direito, e que o Estado de Direito é o Estado Constitucional.

O Estado de Direito é o Estado que se submete ao princípio de que Governos e governantes devem obediência à Constituição.

Bem simples é este princípio, mas luminoso, porque se ergue, como barreira providencial, contra o arbítrio de vetustos e renitentes absolutismos. A ele as instituições políticas das Nações somente chegaram após um longo e acidentado percurso na História da Civilização. Sem exagero, pode se dizer que a consagração desse princípio representa uma das mais altas conquistas da cultura, na área da Política e da Ciência do Estado.

O Estado de Direito se caracteriza por três notas essenciais, a saber: por ser obediente ao Direito; por ser guardião dos Direitos; e por ser aberto para as conquistas da cultura jurídica.

É obediente ao Direito, porque suas funções são as que a Constituição lhe atribui, e porque, ao exercê-las, o Governo não - ultrapassa os limites de sua competência.

É guardião dos Direitos, porque o Estado de Direito é o Estado-Meio, organizado para servir o Ser humano, ou seja, para assegurar o exercício das liberdades e dos direitos subjetivos das pessoas.

E é aberto para as conquistas da cultura jurídica, porque o Estado de Direito é uma democracia, caracterizado pelo regime de representação popular nos órgãos legislativos e, portanto, é um Estado sensível às necessidades de incorporar à legislação as normas tendentes a realizar o Ideal de uma Justiça cada vez mais perfeita.

Os outros Estados, os Estados não-constitucionais, são os Estados cujo Poder Executivo usurpa o Poder Constituinte. São os Estados cujos chefes tendem a se julgar onipotentes e oniscientes, e que acabam por não respeitar fronteiras para sua competência. São os Estados cujo Governo não tolera crítica e não permite contestação. São os Estados-Fim, com Governos obcecados por sua própria segurança, permanentemente preocupados com sua sobrevivência e continuidade. São Estados opressores, que muitas vezes se caracterizam por seus sistemas de repressão, erguidos contra as livres manifestações da cultura e contra o emprego normal dos meios de defesa dos direitos da personalidade.

Esses Estados se chamam Estados de Fato. Os otimistas lhes dão o nome de Estados de Exceção. Na verdade, são Estados Autoritários, que facilmente descambam para a Ditadura.

Ilegítimos, evidentemente, são tais Estados, porque seu Poder Executivo viola o princípio soberano da obediência dos Governos à Constituição e às leis.

Ilegítimos, em verdade, porque seus Governos não têm Poder, não têm o Poder Legítimo, que definimos no início desta Carta.

Destituídos de Poder Legítimo, os Estados de Fato duram enquanto puderem contar com o apoio de suas forças armadas.

Sustentamos que os Estados de Fato, ou Estados de Exceção, são sistemas subversivos, inimigos da ordem legítima, promotores da violência contra Direitos Subjetivos, porque são Estados contrários ao Estado Constitucional, que é o Estado de Direito, o Estado da Ordem Jurídica.

Nos países adiantados, em que a cultura política já organizou o Estado de Direito, a insólita implantação do Estado de Fato ou de Exceção - do Estado em que o Presidente da República volta a ser o monarca lege solutus - constitui um violento retrocesso no caminho da cultura.

Uma vez re-implantado o Estado de Fato, a Força torna a governar, destronando o Poder. Então, bens supremos do espírito humano, somente alcançados após árdua caminhada da inteligência, em séculos de História, são simplesmente ignorados. Os valores mais altos da Justiça, os direitos mais sagrados dos homens, os processos mais elementares de defesa do que é de cada um, são vilipendiados, ridicularizados e até ignorados, como se nunca tivessem existido.

O que os Estados de Fato, Estados Policiais, Estados de Exceção, Sistemas de Força apregoam é que há Direitos que devem ser suprimidos ou cerceados, para tornar possível a consecução dos ideais desses próprios Estados e Sistemas.

Por exemplo, em lugar dos Direitos Humanos, a que se refere a Declaração Universal das Nações Unidas, aprovada em 1948; em lugar do habeas corpus; em lugar do direito dos cidadãos de eleger seus governantes, esses Estados e Sistemas colocam, freqüentemente, o que chamam de Segurança Nacional e Desenvolvimento Econômico.

Com as tenebrosas experiências dos Estados Totalitários europeus, nos quais o lema é, e sempre foi, "Segurança e Desenvolvimento", aprendemos uma dura lição. Aprendemos que a Ditadura é o regime, por excelência, da Segurança Nacional e do Desenvolvimento Econômico. O Nazismo, por exemplo, tinha por meta o binômio Segurança e Desenvolvimento. Nele ainda se inspira a ditadura soviética.

Aprendemos definitivamente que, fora do Estado de Direito, o referido binômio pode não passar de uma cilada. Fora do Estado de Direito, a Segurança, com seus órgãos de terror, é o caminho da tortura e do aviltamento humano; e o Desenvolvimento, com o malabarismo de seus cálculos, a preparação para o descalabro econômico, para a miséria e a ruína.

Não nos deixaremos seduzir pelo canto das sereias de quaisquer Estado de Fato, que apregoam a necessidade de Segurança e Desenvolvimento, com o objetivo de conferir legitimidade a seus atos de Força, violadores freqüentes da Ordem Constitucional.

Afirmamos que o binômio Segurança e Desenvolvimento não tem o condão de transformar uma Ditadura numa Democracia, um Estado de Fato num Estado de Direito.

Declaramos falsa a vulgar afirmação de que o Estado de Direito e a Democracia são "a sobremesa do desenvolvimento econômico". O que temos verificado, com freqüência, é que desenvolvimentos econômicos se fazem nas mais hediondas ditaduras.

Nenhuma País deve esperar por seu desenvolvimento econômico, para depois implantar o Estado de Direito. Advertimos que os Sistemas, nos Estados de Fato, ficarão permanentemente à espera de um maior desenvolvimento econômico, para nunca implantar o Estado de Direito.

Proclamamos que o Estado de Direito é sempre primeiro, porque primeiro estão os direitos e a segurança da pessoa humana. Nenhuma idéia de Segurança Nacional e de Desenvolvimento Econômico prepondera sobre a idéia de que o Estado existe para servir o homem.

Estamos convictos de que a segurança dos direitos da pessoa humana é a primeira providência para garantir o verdadeiro desenvolvimento de uma Nação.

Nós queremos segurança e desenvolvimento. Mas queremos segurança e desenvolvimento dentro do Estado de Direito.

Em meio da treva cultural dos Estados de Fato, a chama acesa da consciência jurídica não cessa de reconhecer que não existem, para Estado nenhum, ideais mais altos do que os da Liberdade e da Justiça.

6. A Sociedade Civil e o Governo

O que dá sentido ao desenvolvimento nacional, o que confere legitimidade às reformas sociais, o que dá autenticidade às renovações do Direito, são as livres manifestações do Povo, em seus órgãos de classes, nos diversos ambientes da vida.

Quem deve propulsionar o desenvolvimento é o Povo organizado, mas livre, porque ele é que tem competência, mais do que ninguém, para defender seus interesses e deus direitos.

Sustentamos que uma Nação desenvolvida é uma Nação que pode manifestar e fazer sentir a sua vontade. É uma Nação com organização popular, com sindicatos autônomos, com centros de debate, com partidos autênticos, com veículos de livre informação. É uma Nação em que o Povo escolhe seus dirigentes, e tem meios de introduzir sua vontade nas deliberações governamentais. É uma Nação em que se acham abertos os amplos e francos canais de comunicação entre a Sociedade Civil e o Governo.

Nos Estado de Fato, esses canais são cortados. Os Governos se encerram em Sistemas fechados, nos quais se instalam os "donos do Poder". Esses "donos do Poder" não são, em verdade, donos do Poder Legítimo: são donos da Força. O que chamam de Poder não é o Poder oriundo do Povo.

A órbita da política não vai além da área palaciana, reduto aureolado de mistério, hermeticamente trancado para a Sociedade Civil.

Nos Estados de Fato, a Sociedade Civil é banida da vida política da Nação. Pelos chefes do Sistema, a Sociedade Civil é tratada como um confuso conglomerado de ineptos, sem discernimento e sem critério, aventureiros e aproveitadores, incapazes para a vida pública, destituídos de senso moral e de idealismo cívico. Uma multidão de ovelhas negras, que precisa ser continuamente contida e sempre tangida pela inteligência soberana do sábio tutor da Nação.

Nesses Estados, o Poder Executivo, por meio de atos arbitrários, declara a incapacidade da Sociedade Civil, e decreta a sua interdição.

Proclamamos a ilegitimidade de todo sistema político em que fendas ou abismos se abrem entre a Sociedade Civil e o Governo.

Chamamos de Ditadura o regime em que o Governo está separado da Sociedade Civil. Ditadura é o regime em que a Sociedade Civil não elege seus Governantes e não participa do Governo. Ditadura é o regime em que o Governo governa sem o Povo. Ditadura é o regime em que o Poder não vem do Povo. Ditadura é o regime que castiga seus adversários e proíbe a contestação das razões em que ela se procura fundar.

Ditadura é o regime que governa para nós, mas sem nós.

Como cultores da Ciência do Direito e do Estado, nós nos recusamos, de uma vez por todas, a aceitar a falsificação dos conceitos. Para nós a Ditadura se chama Ditadura, e a Democracia se chama Democracia.

Os governantes que dão o nome de Democracia à Ditadura nunca nos enganaram e não nos enganarão. Nós saberemos que eles estarão atirando, sobre os ombros do povo, um manto irrisão.

7. Os Valores Soberanos do Homem, dentro do Estado de Direito

Neste preciso momento histórico, reassume extraordinária importância a verificação de um fato cósmico. Até o advento do Homem no Universo, a evolução era simples mudança na organização física dos seres. Com o surgimento do Homem, a evolução passou a ser, também, um movimento da consciência.

Seja-nos permitido insistir num truísmo: a evolução do homem é a evolução de sua consciência; e a evolução da consciência é a evolução da cultura.

A nossa tese é a de que o homem se aperfeiçoa à medida que incorpora valores morais ao seu patrimônio espiritual. Sustentamos que os Estados somente progridem, somente se aprimoram, quando tendem a satisfazer ansiedades do coração humano, assegurando a fruição de valores espirituais, de que a importância da vida individual depende.

Sustentamos que um Estado será tanto mais evoluído quanto mais a ordem reinante consagre e garanta o direito dos cidadãos de serem regidos por uma Constituição soberana, elaborada livremente pelos Representantes do Povo, numa Assembléia Nacional Constituinte; o direito de não ver ninguém jamais submetido a disposição de atos legislativos do Poder Executivo, contrários aos preceitos e ao espírito dessa Constituição; o direito de ter um Governo em que o Poder Legislativo e o Poder Judiciário possam cumprir sua missão com independência, sem medo de represálias e castigos do Poder Executivo; o direito de ter um Poder Executivo limitado pelas normas da Constituição soberana, elaborada pela Assembléia Constituinte; o direito de escolher, em pleitos democráticos, seus governantes e legisladores; o direito de ser eleito governante ou legislador, e o de ocupar cargos na administração pública; o direito de se fazer ouvir pelos Poderes Públicos, e de introduzir seu pensamento nas decisões do Governo; o direito à liberdade justa, que é o direito de fazer ou não-fazer o que a lei não proíbe; o direito à igualdade perante a lei que é o direito de cada um receber o que a cada um pertence; o direito à intimidade e à inviolabilidade do domicílio; o direito à propriedade e o de conservá-la; o direito de organizar livremente sindicatos de trabalhadores, para que estes possam lutar em defesa de seus interesses; o direito à presunção de inocência, dos que não forem declarados culpados, em processo regular; o direito de imediata e ampla defesa dos que forem acusados de ter praticado ato ilícito; o direito de não ser preso, fora dos casos previstos em lei; o direito de não ser mantido preso, em regime de incomunicabilidade, fora dos casos da lei; o direito de não ser condenado a nenhuma pena que a lei não haja cominado antes do delito; o direito de nunca ser submetido à tortura, nem a tratamento desumano ou degradante; o direito de pedir a manifestação do Poder Judiciário, sempre que houver interesse legítimo de alguém; o direito irrestrito de impetrar habeas-corpus; o direito de ter Juízes e Tribunais independentes, com prerrogativas que os tornem refratários a injunções de qualquer ordem; o direito de ter uma imprensa livre; o direito de fruir das obras de arte e cultura, sem cortes ou restrições; o direito de exprimir o pensamento, sem qualquer censura, ressalvada as penas legalmente previstas, para os crimes de calúnia, difamação e injúria; o direito de resposta; o direito de reunião e associação.

Tais direitos são valores soberanos. São ideais que inspiram as ordenações jurídicas das nações verdadeiramente civilizadas. São princípios informadores do Estado de Direito.

Fiquemos apenas com o essencial.

O que queremos é ordem. Somos contrários a qualquer tipo de subversão. Mas a ordem que queremos é a ordem do Estado de Direito.

A consciência jurídica do Brasil quer uma cousa só: o Estado de Direito, já.

Goffredo Telles Júnior

terça-feira, 6 de maio de 2008

Terras, aqui e nos EUA
Carlos Lorena / Tamás Szmrecsányi - Retratos do Brasil, Ed. Política, 1984, Vol. II, p. 489-492

O modo democrático como se constituiu a posse das terras nos EUA, comparado com o autoritarismo no caso brasileiro, ajuda a explicar as duas histórias.

O estudo comparativo de situações em dois ou mais países contribui para a compreensão dos problemas de cada um deles. É com essa idéia que faremos uma comparação entre os problemas e as soluções fundiárias nos Estados Unidos e os mesmos problemas e soluções encontrados no Brasil.

No País, as lutas pela Independência, pela libertação dos escravos e pela República não foram marcadas por grandes conflitos armados de extensão nacional. Mesmo as diversas modificações que tivemos na estrutura governamental desde 1930 até os anos 80 se deram de forma mais ou menos pacífica. Os golpes militares - como em 1937 e 1964 - praticamente não encontraram resistência e portanto não houve grandes modificações nas classes dominantes, sempre constituídas, com pequenas modificações, pela mesma elite.

A proclamação da Independência foi liderada por dom Pedro I, rodeado da mesma corte que o apoiava como representante da metrópole; foi apoiada pela esquadra inglesa, o que nos custou assumir uma dívida de mais de 3 milhões de libras esterlinas, em parte contraída por Portugal para - ironia - combater a independência do Brasil e em parte para pagar indenização pelos "direitos" da Coroa portuguesa, dívida gostosamente aceita pelo príncipe poruguês.

A libertação dos escravos não lhes deu o direito a um pedaço da terra que desbravaram com seu sangue, nem sequer o direito ao trabalho remunerado, permitindo que eles fossem simplesmente expulsos das fazendas que construíram.

A proclamação da República foi mais um episódio com pouquíssima participação popular, realizada por uma fração da própria elite dominante.

Pretexto: salvar a cafeicultura. Mas salvam-se os cafeicultores

Na revolução de 30 chegou a haver ameaça de luta, e até algumas escaramuças; mas em pouco tempo víamos Getúlio Vargas salvando os barões da cafeicultura. Com a crise de 1929, muitos fazendeiros de café não apresentavam condições de sobrevivência; terras passavam para as mãos de colonos e empregados laboriosos em pagamento de dívidas; pequenas propriedades começavam a surgir e eis que um decreto de Vargas perdoa a metade das dívidas dos cafeicultores e estabelece prazos enormes para pagamento da outra metade.

O pretexto era a necessidade de salvar a cafeicultura, base da economia nacional; na realidade, salvou os cafeicultores, que puderam continuar a produzir e a ganhar, sem muita preocupação com melhor tecnologia e sem mais cuidados.

A revolução de 1964 foi feita também para impedir a reforma agrária embora de início ainda pretendesse mudar realmente alguma coisa, chegando a editar o Estatuto da Terra. Do Estatuto, porém, foram cumpridos apenas os dispositivos referentes à política agrícola, favoráveis aos grandes donos de terra, ecompletamente engavetados aqueles que levariam à reforma agrária.

Com todas essas mudanças que nada mudaram, é natural que o problema da posse da terra não se tenha resolvido; ao contrário, a concentração da posse da terra aumentou de forma constante. A legislação sobre terras, começando pelas capitanias hereditárias - a partir de 1534 -, passando pela lei das sesmarias - pela qual governadores ou capitães-gerais podiam ceder faixas de terras a quem se dispusesse a cultivá-las -, pelo período 1822-1850 - em que não houve legislação específica sobre a propriedade rural -, até a Lei Vergueiro, de 1850 - que dispunha que as terras públicas só poderiam ser vendidas em hasta pública -, apresentou sempre a tendência de impedir a posse da terra por pequenos lavradores e a aquisição da propriedade pelo esforço e trabalho.

A situação na década de 1980 persistia: pequenos proprietários eram constantemente esbulhados em seus direitos, constituindo o registro da propriedade em cartório verdadeira piada. Essa insegurança sobre a propriedade foi cuidadosamente preservada, apesar dos levantamentos aerofotogramétricos existentes no País, do conhecimento da tecnologia de cadastros, que poderia ser aplicada.

Lincoln, um homem da fronteira agrícola, lidera abolicionistas

Comparando isso com a situação nos Estados Unidos, torna-se chocante o contraste. A independência dos EUA foi conquistada na Revolução Americana, que rompeu completamente com os ingleses e seus aliados. A liderança da revolução foi assumida por comerciantes, advogados e plantadores, cujos interesses tanto econômicos como ideológicos conflitavam com os da Inglaterra.

A força diretora da revolução, porém, era fornecida por trabalhadores urbanos, mecânicos, pequenos lavradores e lenhadores que empurraram os líderes da classe média para posições extremadas. Boa parte dos autonomistas era compostas de homens da fronteira agrícola, descendentes de imigrantes que tinham ido para América em busca de terra e de liberdade. A libertação dos escravos resolveu-se com a Guerra de Secessão, que envolveu os Estados do Norte - abolicionistas - contra os Estados do Sul - escravocratas. Abraham Lincoln, também originário da fronteira agrícola, liderava os abolicionistas vitoriosos.

Antes disso, o Congresso Continental (que a partir de 1774 reuniria representantes das 13 colônias que lutariam pela independência, agindo como órgão central dos rebeldes) decidiria que todas as colônias deviam consfiscar as terras dos ingleses "e de seus aliados", dividindo-as em lotes, vendendo-as e aplicando o dinheiro em bônus da revolução. Como quase odas as grandes propriedades eram de ingleses ou aliados destes, foi realizada uma das mais drásticas reformas agrárias do mundo. A Pensilvânia, por exemplo, foi quase toalmente dividida em lotes de 500 acres (202 hectares), vendidos aos colonizadores que procuravam terra.

Essa reforma agrária não foi apenas drástica, mas permanente; as 13 colônias renunciaram, em favor do Congresso Continental, a todos os direitos às terras a oeste de suas divisas; desta maneira, o governo americano ficou proprietário da totalidade das terras em que se daria, posteriormente, a expansão do País.

Essa expansão deu-se sempre através da ocupação por grande número de pioneiros, cada um recebendo pequeno lote. Logo no início da caminhada para o Oeste, os lotes eram de no mínimo 640 acres (259 ha); esse limite foi diminuindo rapidamente, e em pouco tempo os lotes eram de no máximo 160 acres (65 ha).

Não havia possibilidade de especulação com terras, pois elas existiam à vontade, de graça ou quase de graça. Além disso, não havia possibilidade de formação de grandes latifúndios, pois como todos podiam obter lotes de 65 ha, suficientes para viver, ninguém iria se sujeitar a trabalhar para outros, por salários de fome.

EUA impedem a concentração e o Brasil consagra o latifúndio

A Lei de Terras americana, de 1862, consagrou definitivamente esse limite máximo de 160 acres. É interessante notar que, no Brasil, a Lei Vergueiro, 12 anos antes, consagrava a grande propriedade - para os ricos e poderosos -, enquanto a lei americana consagrava a propriedade familiar, impedindo a concentração da posse da terra. Aqui está a causa principal do desenvolvimento e poderio econômico de um país, e da triste situação do outro. Sem desenvolvimento agrícola não existe desenvolvimento industrial, e sem liberdade de acesso à terra para o pequeno lavrador não há desenvolvimento agrícola.

Nos anos 80, um terço das terras dos Estados Unidos pertencia ao governo federal; as terras agrícolas estavam distribuídas em praticamente sua totalidade, embora houvesse alguma tendência à especulação. A grande maioria das terras ainda nas mãos do governo caracterizavam-se por serem muito acidentadas (montanhas rochosas, por exemplo), ou muito áridas (deserto de Nevada, por exemplo), ou geladas (no Alasca). Eram terras para pastagens e para exploração florestal, ou ainda para recreação e preservação da vida selvagem. Essas terras eram exploradas sob forma de arrendamento, o que freava um pouco a especulação com terras agrícolas.

No Brasil, se não pudermos adotar tal legislação, seria preciso que, tanto do ponto de vista fiscal, como do ponto de vista do direito de propriedade e das relações de trabalho na agricultura, a legislação desestimulasse a posse improdutiva da terra. E seria também necessária uma reforma agrária drástica para corrigir inicialmente as injustiças existentes.

Terra na mão de poucos reflete a estrutura social e política

A evolução da estrutura fundiária do Brasil tem sido bastante diversa da dos Estados Unidos. Isto se deve menos a razões econômicas do que a fatores políticos e sociais. A extrema concentração da propriedade da terra em nosso país, assim como a sua imutabilidade através do tempo, constitui uma manifestação expressiva do tipo de sociedade e de regime político em que temos vivido durante a maior parte da nossa história.

Trata-se de uma sociedade caracterizada por uma rígida estrutura de classes; por grandes diferenças na distribuição da renda, da riqueza e do poder; e pela ausência de participação democrática dos seus membros.

Por outro lado, o País sempre contou com uma disponibilidade relativamente abundante de mão-de-obra não qualificada, havendo a persistência através do tempo de baixíssimos níveis de remuneração para a maior parte da força de trabalho, tanto rural como urbana. Com o crescente processo de urbanização a partir dos anos 50 e especialmente a partir da década de 60, a oferta de mão-de-obra acumulou-se nas cidades e possibilitou a manutenção dos salários em níveis baixos. Nos anos 80, o subemprego nas grandes cidades atingia taxas que variavam de 20% até 30%. É a existência e o contínuo crescimento dessa massa de miseráveis constituíam, pelo menos em parte, uma decorrência da falta de acesso à terra para uma crescente maioria dos trabalhadores do campo.

Baixos salários podem ser encarados como uma vantagem para o crescimento econômico. Trata-se, porém, apenas de uma vantagem a curto prazo, e que só beneficia diretamente as empresas. Além de não oferecerem quaisquer vantagens aos próprios trabalhadores, baixos níveis de remuneração da força de trabalho, mais cedo ou mais tarde, acabam impondo limitações ao desenvolvimento auto-sustentado da economia como um todo. Este é um processo que só se realiza através da expansão e da diversificação (ou ambos os processos) da demanda efetiva.

Na primeira metade dos anos 80, a economia brasileira parecia atingir um desses limites do seu desenvolvimento: o mercado interno encontrava-se virtualmente estagnado, e o externo, a médio e longo prazos, só chegava a constituir uma alternativa válida na cabeça de alguns dos nossos iluminados tecnocratas e governantes.

Nos anos 80, oposição à reforma agrária ainda era poderosa

A reforma agrária seria um instrumento de política econômica capaz de elevar, direta ou indiretamente, e em pouco tempo, os níveis de emprego, de renda e de consumo de toda uma massa de pessoas à margem de mercado consumidor de muitos produtos. É claro que o aumento da demanda efetiva não seria a única, nem a principal, motivação para se promover a realização da reforma agrária.

Trata-se, afinal, de uma questão de justiça social, de um imperativo político de redistribuição da renda, da riqueza e do poder. Além disso, uma redistribuição a favor dos que produzem riqueza por meio de seu próprio trabalho é capaz de gerar efeitos que vão muito além do setor agropecuário, atingindo a economia e a sociedade como um todo.

Nunca é demais lembrar, no entanto, que a reforma agrária não é algo que se faça de cima para baixo, e que as forças que lhe são contrárias continuavam sendo muito poderosas no Brasil da década de 80. Isto, porém, não impede que se possa afirmar que o desejável aumento de emprego, da remuneração e do consumo dos trabalhadores - tantos rurais como urbanos; quer dos setores industrial e de serviços - dificilmente iria materializar-se no contexto da vigente estrutura fundiária. Ou seja, embora a reforma agrária não constituísse a solução de todos os problemas, parecia inegável que todas as soluções teriam que acabar passando, mais cedo ou mais tarde, por ela.

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O poder do latifúndio: Velhas oligarquias
Clóvis Moura - Retratos do Brasil, Ed. Política, 1984, Vol. II, p. 249-250

Sobretudo até 1930, articulam-se as oligarquias, símbolos de um país agrário e atrasado que ainda em 1984 continuavam presentes na política brasileira.

Os resultados das eleições de 1982 trouxeram, para os observadores políticos, uma realidade bem delimitada dos poderes eleitorais em cada região do Brasil. Mosraram, ainda, uma conexão entre aquilo que se convencionou chamar de oligarquias políticas e os números das urnas. Assim, verificou-se que, na antiga área do latifúndio tradicional, a concentração de votos para o partido do governo reflete uma estagnação política que determina o prestígio eleitoral do PDS. Levando em conta que é ali onde o velho latifúndio se estratificou e que o ritmo de mudança social é quase inexistente, pode-se deduzir que essa concentração de votos favorável ao governo - que se estende por uma área que vai do Norte de Minas Gerais ao Estado do Maranhão, compactamente - reflete a conservação do poder político nas mãos de pessoas, grupos ou segmentos oligárquicos, capazes de manter o eleitorado subordinado (direta ou indiretamente) ao seu comando eleitoral.

O poder oligárquico é um tipo de poder que dominou nas principais regiões do Brasil, despoticamente, durante mais de 200 anos. Depois, houve uma reformulação nos seus métodos de mando, uma remanipulação nas suas lideranças, mas, no fundamental, continuou decidindo politicamente, de cima para baixo, através de leis consuetudinárias que não se discutiam. A sua presença se faz sentir, por exemplo, na existência de grotões (onde em 1982 o PDS chegou a obter mais de 90% dos votos) que substituíram os antigos currais eleitorais dos "coronéis" latifundiários.

O poder oligárquico pode ser regionalizado da seguinte maneira: as oligarquias pastoris dos pampas, no Sul; as oligarquias dos barões do café, em São Paulo e Minas Gerais; as oligarquias nordestinas; e oligarquias menores, como as do Paraná e Santa Catarina.

Os poderes de grupos oligárquicos se desenvolvem através de um processo histórico muito complexo, mas que tem como eixo fundamental o poder do latifúndio, especialmente o latifúndio na sua forma tradicional e arcaica, como o do Nordeste e Norte do País.

Sem levarmos em consideração a fase do Brasil Colônia, podemos ver na estrutura do Estado altamente centralizada do Império - com um imperador, um Senado vitalício e um Conselho de Estado também vitalício - a origem da formação das oligarquias como uma forma de distribuiçao do poder entre aqueles que representavam as classes sociais dominantes.

Protegidos pelo governo central, surgem os grupos e famílias que se faziam representar no poder, e que selecionavam os quadros políticos que poderiam ou deveriam representá-los na estrutura do Estado. Assim, abria-se a perspectiva para que esses grupos e seus representantes usassem métodos considerados válidos, alijando os seus adversários dos postos de liderança.

As oligarquias significavam a violência no poder. A violência eleitoral, como a instituição do voto em aberto que permitia a existência de fraude como norma; a violência política, através da perseguição dos grupos de oposição; e a violência física, o terrorismo puro e simples, através do assassínio de pessoas ou mesmo de famílias que eram eliminadas sem que os órgãos da Justiça procurassem apurar as causas e punir os criminosos.

O escritor Abguar Bastos afirma que "os destacamentos, os juízes e os fiscais subordinam-se aos 'coronéis', que passam a exercer, ostensivamente, o poder político regional e a formar a rede dos potentados latifundiários que afunilava aquele poder na direção dos centros urbanos".

Com o fim do Império, o voto transforma-se numa "mercadoria" política que o "coronel" negocia em troca de sua impunidade. A política transforma-se, portanto, em um exercício do poder através de votos de "cabresto".

O presidente Campos Sales (1898-1902) contemporiza através daquilo que se chamou "política dos governadores". Ou seja, uma política estabelecida de cima para baixo sem a participação popular.

Hermes da Fonseca (1910-1914) foi o primeiro presidente a se insurgir contra o poder oligárquico a esta altura urbanizado, em face do processo de desenvolvimento da sociedade brasileira. As oligarquias já urbanizadas tinham, porém, a sua raiz de poder na posse da terra. Por isso, a presença do jagunço era indispensável para que o "coronel" oligárquico mantivesse o seu poder. Um exemplo de violência foi a eleição do general Dantas Barreto, em 1911, para enfrentar a oligarquia pernambucana liderada pelo conselheiro Rosa e Silva, cabeça da oligarquia rosista. Tendo sido indicado e apoiado pelo presidente Hermes da Fonseca ao governo de Pernambuco, Dantas Barreto enfrenta uma reação violenta da oligarquia.

As escaramuças se sucedem durante os comícios. Os membros da oligarquia, assim como os seus adversários, andavam armados nos comícios e faziam constantemente o uso das suas armas. Segundo um cronista da época, "era uma situação de terror". Tiroteios eram comuns nas praças. Em um deles, em 19 de setembro, houve agressões, de lado a lado, saindo feridos vários políticos. Noutro, cinco dias depois, a 24 de setembro, foi assassinado o soldado João de Santana por se negar a dar um viva ao conselheiro Rosa e Silva. No ato de recolhimento do corpo da vítima, novos tiros foram dados e o comércio fechou as portas.

Verdadeira guerra contra os rosistas de Pernambuco

Por outro lado, havia um princípio de mobilização popular contra o poder oligárquico rosista. Foi criado um batalhão chamado "34 descalço", compostos exclusivamente de gazeteiros (vendedores de jornais), que lutou várias vezes em praça pública com a polícia da oligarquia.

Em um comício foi ferido o próprio chefe de polícia, Ulisses Costa. Estabeleceu-se um conflito entre os efetivos do Exército, que garantiam a candidatura de Dantas Barreto, e os elementos da polícia, que eram rosistas. Várias pessoas morrem vítimas da violência durante a campanha, entre elas o capitão José Lemos e Libânia Machado. Outros foram espancados, como o médico Gouveia de Barros. O povo invade o 2. Batalhão de Polícia, destruindo-o parcilamente. São levantadas trincheiras nas ruas. Em outros comícios há mortes e ferimentos. Finalmente, após as eleições, com a vitória de Dantas Barreto, o povo cantava: "O pau rolou, caiu,/Rosa desceu,/ Dantas subiu."

Hermes da Fonseca combate outras oligarquias. Ficaram famosas as intervenções no Pará, contra os Lemos; no Ceará, contra os Acciolys; em Alagoas, contra os Malta; na Bahia, quando o ministro da Justiça J.J. Seabra ordenou o bombardeio da cidade de Salvador; no Rio de Janeiro, primeiro a favor, depois contra Nilo Peçanha.

A década de 20 é o momento de crise do poder oligárquico, o qual não se desarticula, no entanto. Os dois 5 de julho (em 1922, o episódio conhecido como os 18 do Forte de Copacabana; em 1924, a revolta tenentista, sob o comando do general Isidoro Dias Lopes, em São Paulo) e a marcha da Coluna prestes alertam as populações do interior, criando um ambiente favorável à Aliança Liberal (1929-1930).

A própria Coluna Prestes e os seus membros não tomam consciência da origem social do poder oligárquico. Politicamente, os seus membros queriam destruir as velhas oligarquias que dominavam os mecanismos de poder do País e impunham as suas normas de conduta a todos os segmentos oprimidos da sociedade. Utopicamente, no entanto, achavam que, com simples reformas no corpo político, conservando-se, basicamente, a mesma estrutura social, o Brasil poderia democratizar-se.

Numa carta dos chefes da Coluna ao deputado Batista Luzardo, que os defendia na Câmara dos Deputados, eles afirmavam que, "como limite mínimo de nossas aspirações liberais, incluímos a revogação da lei de imprensa e a adoção do voto secreto. Com tais medidas, uma natural anistia e a impresncindível suspensão do estado de sítio, talvez seja possível ao governo trazer ao Brasil a paz e a tranqüilidade de que tanto necessita."

A ideologia pequeno-burguesa e reformista da Coluna Prestes, segundo o historiador Nelson Werneck Sodré, não podia ir muito longe politicamente. O próprio Lourenço Moreira Lima, secretário oficial da Coluna, limitou-se a queimar documentos de cartórios, sem fazer, porém, conexão política mais relevante e lúcida entre as injustiças cometidas pelos donos de terras e o poder das oligarquias. Por isso, os latifundiários (base social do poder oligárquico) temiam a Coluna Prestes por aquilo que ela poderia ter feito. Não pelo que ela fez.

Mas o movimento da Coluna Prestes faz revelar uma diferenciação profunda entre o ideal desse grupo e o da Aliança Liberal em relação às oligarquias, fato que leva o próprio Luís Carlos Prestes a não apoiar a revolução de 30. A relação dos adeptos da Aliança Liberal revela um número reduzido de aliancistas em todo o Norte e Nordeste - segundo depoimentos do historiador Hélio Silva - à exceção da Paraíba, onde os oligarcas e os "coronéis" acompanharam o governo local, do presidente João Pessoa, candidato à vice-presidência da República na chapa de Getúlio Vargas. Assim mesmo, houve uma forte reação do chefe sertanejo José Pereira, conhecida como o levante da Princesa, em fevereiro de 1930.

Vitoriosa a revolução de 30, o governo Provisório de Getúlio Vargas nomeou os "tenentes" para as interventorias do Norte do País. Juarez Távora ficou conhecido como "vice-rei". João Alberto Lins de Barros foi nomeado delegado militar e depois interventor em São Paulo. Após um início conflituoso, os tenentes interventores - sem base social para se manterem no poder - aliaram-se aos "coronéis". Assim, em 1934, vários interventores foram eleitos para o governo constitucional mediante coligações nas Assembléias Legislativas, com raras exceções, como no Rio Grande do Norte.

Em 1945, um fato político-militar vem refazer as relações e a correlação das forças políticas internas no Brasil: a vitória dos aliados contra a Alemanha nazista, o fascismo italiano e o militarismo japonês.

O governo autoritário de Getúlio Vargas, imposto em 1937 através de um golpe, entra em crise. Vargas trata de terminar como Estado Novo e o regime autoritário, providenciando a legislação eleitoral e a formação dos partidos políticos que disputarão a Assembléia Constituinte, em 1946.

Forma-se, então, o PSD (Partido Social Democrático), agrupando setores que apoiavam o governo. Segundo Hélio Silva, "é o partido no poder para sustentar o poder."

As oposições agrupam-se inicialmente em torno de um nome que tinha uma legenda revolucionária, vinda do episódio dos 18 do Forte de Copacabana: Eduardo Gomes. Esse movimento oposicionista que depois se irá diversificando, com mudanças na sua estrutura, terminará na organização da UDN (União Democrática Naciona). Dizendo-se democrática, conspira para o golpe militar que terminará com a destituição de Getúlio Vargas, em 29 de outubro de 1945. A partir daí, as oligarquias regionais têm posições diferentes: algumas apóiam a UDN; a maioria ingressa no PSD, que representa o latifúndio tradicional. Iso fez com que a UDN iniciasse um atividade política nitidamente golpista a partir de então.

Após o golpe militar de 1964, as oligarquias regionais são colocadas em quarentena, pois não havia necessidade de seu prestígio para eleger o presidente ou os governadores através do voto. Mas, com a evolução dos acontecimentos, o Regime Militar reativa essas oligarquias, dando a elas novos níveis de prestígio, a fim de manter uma aparência de democracia nos moldes da "velha República".

Com o Colégio, oligarquias readquirem importância

A formação do Colégio Eleitoral, que em janeiro de 1985 está encarregado de escolher o presidente da República, em parte baseia-se nas oligarquias mantidas e utilizadas pelos governadores nomeados até 1982. Reedita assim o "voto de cabresto" e os oligarcas readquirem o seu antigo prestígio. Não é por acaso que, nas eleições presidenciais indiretas para a sucessão do general Figueiredo, a oligarquia baiana da família Viana apoie o candidato do regime, Paulo Maluf. Rearticulam-se os mecanismos de dominação e a violência volta a ser uma sistemática de dominação.

Com a reelaboração pelo Regime Militar do esquema eleitoral, os métodos dos terroristas das oligarquias passam a funcionar de novo porque elas passam, também, a ter importância política no processo eleitoral. Assim, a fraude, a intimidação e especialmente a corrupção passam a ser cabos eleitorais do regime. Em face disso, foi criado um Colégio Eleitoral fraudulento, no qual cada um dos seus membros, em 15 de janeiro de 1985, vota por 122.796 eleitores que não podem votar.

Com isso se refuncionalizam as oligarquias, a democracia brasileira retrocede até à época do Poder Moderador e o povo paga politicamente por este retrocesso histórico sem precedentes.

Em 1984, o problema da terra no Brasil continuava intocado. Apesar da diversificação havida na composição da população brasileira na relação cidade-campo, tendo aumentado a população urbana e diminuído percentualmente a camponesa, o problema do campo brasileiro continuava sem solução. COm isso mantinham-se intocáveis as oligarquias autoritárias que ao longo da nossa história, mas especialmente depois de 1964, oprimem a massa camponesa.

sexta-feira, 2 de maio de 2008

A discussão do terceiro mandato
A discussão do terceiro mandato deve ser feita pelos movimentos populares, organizações da sociedade civil e pela parcela da população que progrediu, mudou de vida, com o Governo Lula. O Executivo Federal, comandado por Lula, não pode entrar na discussão.

O terceiro mandato deve ser um presente, um voto de confiança, dado pela maioria dos brasileiros, ao Presidente Lula, autorizando-o a concorrer a mais um mandato.

Inclusive eu penso que a Constituição não deveria estabelecer um número fixo de mandatos, mas sim estabelecer expressamente a possibilidade do presidente em exercício requerer, quando tiver popularidade suficiente, autorização do Povo para concorrer a mais um mandato.

Assim, os melhores presidentes irão governar pelo tempo que o Povo achar necessário e aprovar, ou então, enquanto forem os melhores (terceiro/quarto/quinto/sexto/.../ n mandatos). Já os incompetentes ficam 1/2 mandato, 1/4 de mandato, 1/8..., 1/n mandatos. Os incompetentes são barrados no plebiscito que verifica a vontade popular e a aprovação popular aos projetos implantados e realizados pelo governante.

E o que o Planalto faz enquanto se discute o terceiro mandato ? bem, o Presidente Lula deve continuar fazendo projetos sociais e fortalecendo a candidatura de sua sucessora (Dilma), pois, mais cedo ou mais tarde, ela será chamada a sucedê-lo e deve estar fortalecida para isto.

A idéia é chegar em 2010 com duas cartas fortíssimas na manga: autorização popular para que o Presidente Lula possa concorrer novamente e também uma sucessora fortíssima. É melhor ter duas cartas fortíssimas do que não possuir nenhuma.

Portanto, as duas frentes devem ser fortalecidas: um eventual terceiro mandado e a candidatura da Dilma.

Plebiscito para o terceiro mandato de Lula
A maior parte do fracasso do Brasil nas políticas públicas e sociais está relacionada com o excesso de mudança de governantes e tempo curtíssimo de mandato. Certamente, isto também se liga ao fato da política no Brasil ser feita com o fígado e ser tratada como oposição pessoal. A conseqÜência disso é que de quatro em quatro anos temos uma quebra da estabilidade e das políticas públicas. Ninguém sabia o que viria no próximo governo... Programas sociais são cortados, o modelo econômico é modificado, obras públicas são congeladas, etc, ou seja, a cada quatro anos ocorria um forte baque social.

Este problrema foi reduzido/relativizado com a inserção de um segundo mandato, que deu ao governante um tempo maior para a concretização dos projetos sociais. O resultado lógico disso foi a estabilidade/continuidade das políticas públicas (sociais e econômicas). Logo, estabilidade e crescimento do país. Avanço social e econômico sem traumas, rupturas ou mudanças drásticas.

Por isso, o advento de um terceiro mandato, nesta ótica, não é um problema ou quebra institucional. Mas, pelo contrário, significa a estabilização das instituições e de políticas públicas que estão dando certo e resolvendo os graves problemas sociais que sempre castigaram o país. Problemas sociais que contavam com um grande aliado: a efemeridade dos mandatos dos Governos, a oposição política confundida com oposição pessoal, incompetência administrativa de governantes, assim como governos que trabalharam/governaram para uma minoria ao invés de atuar em benefício da maioria.

Portanto, o terceiro mandato significa estabilização do País, continuidade de políticas públicas (sociais e econômicas) que estão resolvendo graves problemas sociais e promovendo o crescimento do Brasil, ou seja, estamos às portas do primeiro mundo. Porém, só vamos atravessá-la definitivamente quando houver a ampliação efetiva da participação popular nas decisões que afetam a maioria. Enquanto as decisões e os Governos continuaram pertencendo a um seleto grupo de escolhidos, corremos o risco de recuar. Basta que um incompetente da oposição assuma o Governo para fazer o País voltar no tempo...

Por isso, a participação popular no Governo e nas decisões do Governo é um fato essencial. O Povo pode dar poderes e pode retirar poderes. Pode dar um terceiro/quarto/quinto/sexto/etc mandato ou pode cortar a cabeça do governantes que em poucos meses de governo fez besteira e traiu os interesses e a vontade popular. Precisamos ter mecanismos que operacionalize a participação popular nas decisões do Governo e permite a Democracia Direta. Democracia Direta é a verdadeira Democracia. Democracia Representativa é um engodo, um golpe, uma tramóia contra os interesses e a vontade da maioria. Um mecanismo que tira o poder da maioria e dá a uma minoria que usa este poder para governar em causa própria.

Outro ponto que deve ser vislumbrado é: o que há contra o terceiro mandato ? A primeira resposta será: a Constituição de 88. Porém, a Constituição não é um entrave aos interesses e à vontade da maioria da população. Isto porque a Constituição expressa os interesses e a vontade da maioria. Ela está embaixo desses interesses e dessa vontade. Logo, a Constituição tem que responder e corresponder à vontade e aos interesses da maioria da população. O contrário disso ocorre em uma Constiuição autoritária que visa adequar os interesses e a vontade popular aos seus ditames.

Outro elemento contra o terceiro mandato é a sede de poder da oposição que quer recuperar o Governo Federal, o Governo do Brasil, para seus interesses e sua vontade. É uma minoria branca, rica e conservadora que vive incrustada, colada, na política brasileira. Esta minoria, quando governa, orienta o Estado para seus interesses e sua vontade. É uma minoria que governa em causa própria e esquece a maioria da população, os interesses coletivos. O exemplo mais evidente disso, atualmente, está na epidemia de dengue no Rio de Janeiro.

Inegavelmente, a sede de poder da oposição (tucanos + PFL), ou sua vontade patológica de recuperar o governo central, não é legítimo e nem tem força suficiente para obstar o advento de um terceiro mandato. Não há legitimidade na pretensão da oposição, ou seja, a única coisa que ele podem alegar ou opôr à idéia de terceiro mandato é o formalismo frio da Constituição Federal ou seus interesses pessoais, interesse em serem eles os governantes, interesse em fazer o Estado trabalhar/beneficiar a minoria que são e representam.

O que é bom para o Povo brasileiro e para o Brasil não é bom para a oposição (tucanos + PFL). Isto porque os interesses dos tucanos e do PFL é contrário ao interesse do Povo Brasileiro, é contrário ao interesse e à vontade da maioria da população. Além disso, tucanos e PFL representam um minoria, representam e são a elite branca e rica que vem explorando, excluindo e oprimindo a maioria dos brasileiros desde o descobrimento.

Isto aparece cristalinamente na questão do terceiro mandato de Lula. O interesse e a vontade do Povo Brasileiro é ter um governante que faça diferença, que faça as coisas acontecerem, que modifique a realidade social e leve o Brasil para a categoria de país do primeiro mundo. E o Povo Brasileiro descobriu que Lula é esta pessoa. Um governante que faz as coisas avançarem no rumo certo e de maneira correta.

O mal social, no Governo Lula, perde terreno, a miséria é reduzida, a pobreza cai e a população melhora de vida. Os indicadores sociais mostram que o Governo Lula faz diferença. Enquanto a oposição (tucanos e PFL) foram governantes, pouca coisa mudou. Isto porque eles sempre governam para uma minoria, para os ricos. Lula governa para a maioria da população, beneficiando a todos, inclusive os ricos. Em outras palavras, a oposição não possui a competência e a capacidade que tem o Governo Lula. É um Governo abençoado. Quem está perdendo com o Governo Lula ? Quem não quer que Lula continue governando ?

Portanto, Lula é um governante que faz diferença, que faz as coisas acontecerem, que modifica a realidade social e põe o Brasil nos eixos, rumo ao primeiro mundo. Basta olhar para os indicadores sociais e econômicos para ver isto acontecendo neste exato momento. Logo, o interesse e a vontade da maioria da população é que este governante continue dirigindo o país. Por que mudar aquilo que funciona perfeitamente, que está dando certo ? Por que mudar um time vencedor ?

Porém, alguém dirá, mas estas são as regras do jogo... E a minha resposta será: exatamente por tratar a coisa pública, o Estado e o Governo da sociedade, a gestão dos interesses públicos, como um jogo que o Brasil, por muito tempo, não conseguiu resolver os problemas sociais e as políticas econômicas eram baseadas em tentativa e erro. E, por tratarem a coisa pública como um jogo é que, apesar de sermos um país riquíssimo, vivíamos numa situação de terceiro mundo. A política não é jogo e os interesses sociais/públicos não são peças de uma mesa de cassino.

A concretização de um terceiro mandato de Lula não ocasiona nenhum trauma social ou institucional. Isto porque este terceiro mandato expressa a vontade social, a vontade da maioria dos brasileiros. Além disso, o terceiro mandato não será dado de mão beijada. Primeiro vem um plebiscito, uma consulta popular, que autorizará a terceira candidatura. Depois disso vem a eleição propriamente dita, na qual Lula figurará como candidato. Logo, o pleito eleitoral ocorrerá normalmente, dando, inclusive, à oposição, a oportunidade de buscarem o apoio popular para seus candidatos.

Portanto, o terceiro mandato não viola a Democracia, não ocasiona nenhuma quebra institucional e não é uma imposição autoritária, mas sim a expressão da vontade popular, a expressão da vontade da maioria. O Povo reconhecendo a competência do governante autorizou-o a continuar participando das eleições e, elegendo-o, significa que quer vê-lo governando o país or mais tempo.

Trauma social e quebra institucional será ocasionada se o país sair das mãos de um bom e competente governante e cair nas mãos autoritárias da oposição (tucanos e PFL). O retorno do país para estes elementos significará que o governo deixou de ser um governo da maioria e voltou a ser o governo de uma minoria exploradora, opressora e incompetente no trato das questões sociais. A máquina administrativa retornou aos parasitas que a utilizam para satisfazer vontade própria. Tucanos e PFL não governam para o Povo ou para a maioria, não respondem e nem correspondem à vontade da coletividade. Mas agem em vontade própria ou vontade de uma minoria rica, branca e exploradora.

Lembram do caso da CPMF ? A CPMF foi um exemplo cristalino das ações da oposição (tucanos e PFL) contra a maioria e a favor de uma minoria rica e branca. Outro exemplo é a dengue no Rio de Janeiro, as privatizações do Governo FHC, etc.

Inclusive, os tucanos governam São Paulo a décadas e as coisas não mudam e nem avançam. Não conseguem terminar o metrô. As favelas e a periferia, assim como os excluídos, crescem exponencialmente. É válido lembrar ainda a tentativa do Serra (Governo de São Paulo) de quebrar a autonomia das universidades públicas estaduais. Como a cúpula destas universidades (Reitora, Pró-reitores e Diretores) é gente de confiança ou ligada aos Tucanos e ao PFL, quase conseguiram concretizar o golpe. Só não concretizaram porque houve um levante dos estudantes e funcionários que ocuparam a Reitoria da USP.

As mudanças sociais existentes em São Paulo se devem mais às ações do Governo Federal e pouco, pouquíssimo às ações do Governo tucano. Certamente, os interesses e a vontade dos ricos são sempre satisfeitos e atendidos quando tucanos e PFL governam.

Enfim, o terceiro mandato, dado pela coletividade, ao Presidente, através de um plebiscito, uma consulta popular, é legítimo e significa a continuidade de políticas públicas, sociais e econômicas, de relevante interesse público. Significa também a estabilização do País e a certeza de que as coisas continuam seguindo o rumo atual.

Reescrevendo a história
José Carlos Ruy -- Retratos do Brasil, Ed. Política, 1984, Vol. II, p. 381-382

No final do Regime Militar se divisavam sinais claros de que a forma de contar a história do País mudava para uma perspectiva mais ampla e democrática.

Contar a história é uma atividade que reflete as convicções políticas e sociais das classes e grupos sociais aos quais o historiador não só traduz as idéias daqueles que dominam, mas também deixa transparecer a visão do mundo dos grupos emergentes, que lutam contra a hegemonia política, econômica, social e ideológica das classes que estão no poder.

Cada classe busca no passado os fatos que compõem o mosaico de sua visão de mundo - podemos dizer esquematicamente. Procura seus heróis e valoriza os momentos mais criativos de seus antepassados de classe, momento em que - agindo em defesa de seus próprios objetivos - eles puderam representar a vontade geral da sociedade.

Por isso a história é uma ciência que está em revisão constante. A medida que o processo democrático se aprofunda, a história tende a ser contada do ponto de vista de camadas mais amplas da população. "É o desenvolvimento da consciência social e política do povo que exige a revisão de nossa história", reconheceu o historiador José Honorório Rodrigues, numa conferência de 1965.

A historiografia brasileira oferece exemplos disso. A obra do historiador do século passado Francisco Adolfo Varnhagen é um deles. Segundo José Honorio Rodrigues Varnhagen foi o principal responsável "pela criação da história oficial, que sempre defende a razão do Estado e com ela se identifica". Apologista da dinastia dos Bragança, protegido de Pedro II, Varnhagen inaugurou também a versão de que nossa Independência teria sido pacífica, a despeito das lutas na Bahia e no Maranhão, que envolveram um número de soldados maior do que o mobilizado pela campanha de Simón Bolivar ! Caracteristicamente, Varnhagen valorizou em excesso a luta dos colonos pernambucanos, liderados pelos grandes senhores de terras e de escravos, contra a invasão holandesa, no século 17.

O resgate da memória de Tiradentes e sua ascensão ao panteão dos heróis nacionais é outro exemplo de como as classes contam a história. Durante o Império, Tirantes foi relegado a um segundo plano, e Varnhagen - na primeira edição de sua 'História Geral do Brasil', de 1857 - chamou-o de insignificante e indiscreto, a quem a morte na forca atribuiu méritos que não tinha. Afinal, Varnhagen era o historiador da classe e da dinastia que condenara Tiradentes, classe à qual também o traidor Joaquim Silvério dos Reis se ligou em 1791, desposando uma das filhas do oligarca Luís Alves de Freitas Belo. Outra filha desse personagem se casou, depois, com Francisco de Lima e Silva, um dos chefes militares mais eminentes do Primeiro Reinado, regente do Império durante a menoridade de Pedro II e pai de Luiz Alves de Lima e Silva, o duque de Caxias.

Dessa forma, o traidor da Inconfidência Mineira foi tio por afinidade, do duque de Caxias - o patrono do Exército -, o que denota ligações familiares e de classe que realmente não permitiam a valorização da atividade conspiratória do alferes.

Pela atuação do movimento republicano e posterior advento da República, o papel de Tiradentes pode ser reavaliado. A primeira homenagem oficial a ele prestada ocorreu em Minas Gerais, em 1867, quando o presidente da Província e futuro fundador do Partido Republicano, Joaquim Saldanha Marinho, mandou construir um monumento a Tiradentes em Ouro Preto. Após a queda da Monarquia, em 1889, Tiradentes foi transformado em herói nacional.

Com a emergência das classes populares na vida política nacional - intensa depois da Segunda Grande Guerra -, outros heróis de nossa história de origem plebéia tiveram sua memória recuperada. Zumi, líder do Quilombo dos Palmares, e Antônio Conselheiro, dirigente do arraial de Canudos, por exemplo, passaram a ser considerados sob um ponto de vista mais positivo. O primeiro era até então tido como um bandido cujas atividades mereceriam antes fazer parte da crônica policial do que propriamente da história, e Conselheiro foi descrito como um louco místico liderando jagunços fanatizados.

Quando a causa pela qual morreram pode ser identificada como a causa de enormes parcelas do Povo, ambos passaram a ser reivindicados como heróis.

Esses exemplos pretendem mostrar que o reconhecimento dos heróis pelos que contam a história está intimamente relacionado com a atividade daqueles que fazem a história. Assim, durante o Império, um setor da oligarquia, originário do Nordeste, dominava a cena nacional, e seus heróis foram os chamados restauradores pernambucanos, que lutaram contra os invasores holandeses - uma luta que, no entanto, destinava-se a restabelecer a soberania portuguesa sobre o território ocupado.

Com a República, outro setor da oligarquia, localizado principalmente em Minas Gerais e São Paulo, ascende. Traz consigo novos heróis. Tiradentes, o maior deles, personagem central do episódio mais marcante em que esse setor liberal oligárquico esteve envolvido - a Inconfidência Mineira -, é transformado em herói nacional.

Uma hipótese que se pode formular aqui é de que a revisão da história ocorre nos momentos em torno da ruptura insitucional ou social, como no final da Monarquia e do Estado Novo. São períodos em que os problemas mais gerais são amplamente debatidos, e soluções para as questões mais candentes são propostas pelas classes e pelos grupos sociais.

O reexame da história é uma tentativa de detectar esses temas no passado e de reavaliar a solução a eles dada.

Após 30, surgem importantes obras de análise do País

Os anos que se seguiram à revolução de 1930, por exemplo, forma particularmente notáveis: nessa época aparecem obras importantes como as de Gilerto freyre, Caio Prado Júnior, Sérgio Buarque de Holanda, Roberto Simonsen, Azevedo Amaral, entre outros, consolidando algumas das linhas de interpretação histórica ainda dominantes entre os pensadores nacionais. A rica atividade intelectual do período que vai do fim do Estado Novo até pouco depois do golpe militar de 1964 sugere também que a vigência de liberdades democráticas, mesmo que limitadas, propicia momentos criadores para a historiografia.

No início dos anos 80, para algumas correntes intelectuais se tornava mais nítida uma tendência à divisão da história do Brasil baseada não nos grandes eventos políticos, mas nas alternâncias dos modos de produção e nos tipos de relação de trabalho. Um exemplo é a publicação, em 1978, do já clássico 'Escravismo Colonial', de Jacob Gorender.

Com a perspectiva do fim próximo do Regime Militar, alguns sinais muito claros mostravam que mudavam também as atitudes em relação aos heróis homenageados pelo cambaleante Regime Militar. Um caso expressivo: o policial americano e instrutor de polícias políticas latino-americanas Dan Mitrione, morto pelos guerrilheiros tupamaros no Uruguai, foi homenageado, durante o governo Médici, com a atribuição de seu nome a uma rua de Belo Horizonte.

Em 1983, essa homenagem foi cancelada e a rua rebatizada com o nome de José Carlos da Matta Machado - estudante e ex-vice-presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE), assassinado em 1973 pela polícia política pernambucana, durante o governo do mesmo general Médici -, acontecimento carregado de simbologia.

Outro caso: na periferia pobre de São Paulo, durante os saques de abril de 1983, populares arrancaram a placa de uma rua com o nome do general Euclides Figueiredo, pai do último presidente militar, João Figueiredo - o chefe de um regime agonizante e repudiado pelo povo.

sexta-feira, 25 de abril de 2008

Quando a Ciência banaliza a vida: o caso das células-tronco
Eu não sou contra as pesquisas com células-tronco. Acredito que pesquisas científicas que melhorem e preservem a vida devem ser realizadas. Eu sou contra o uso de embriões ou fetos humanos nestas pesquisas. Seres Humanos não podem ser matéria-prima para processos industriais ou para pesquisa. A vida não pode ser matéria-prima de laboratório e tubos de ensaios.

Além disso, ressalto mais uma vez, a mídia somente foca nos resultados das pesquisas com as tais células troncas. Não dizem que estas pesquisas usam seres humanos como matéria-prima. Não dizem que vidas congeladas (outra aberração diabólica) serão eliminadas, fatiadas, liquefeitas e estudadas em microscópios, ou então, servirão para extrair as tais células tronco....

Querem fazer pesquisas com células-tronco ? Que façam... Porém, devem respeitar a vida. Busquem matéria-prima em outra parte. Considero que a proibição do uso de embriões e fetos humanos em pesquisas científicas é fundamental para impedir o avanço da banalização da vida. Um fenômeno que conhecemos muito bem e que resulta a extermínio em massa de pessoas consideradas inviáveis ou indesejáveis.

Usar embriões e fetos em pesquisas científicas é uma demonstração clara de banalização da vida, de coisificação do humano. O Homem é transformado em matéria-prima de processo científico ou industrial.

Isto parece ser uma coisa boba. Uma coisa sem muita importância. Uma coisa que a Ciência aprova com muitos méritos. Afinal novas curas e tratamentos irão surgir dessa panacéia chamada células-tronco. Isto me lembra um artigo sobre o Nazismo que foi publicado na Revista Superinteressante de julho de 2005.

Este artigo busca explicar as razões que levaram milhões de alemães a seguirem Hitler e a tolerarem as ações nazistas contra pessoas consideradas descartáveis pelo sistema. E a primeira idéia apresentada no artigo, que ajudou o totalitarismo a avançar na Alemanha, foi o carimbo da ciência.

Diz o texto: "Como uma pessoa comum pode conviver com sua consciência após assassinar inocentes ? A resposta: fica mais fácil dormir à noite quando se acredita que seus atos trarão o bem à humanidade. Hitler convenceu os alemães - e muitos estrangeiros - de que, após o massacre, nasceria um mundo melhor.

Isso pode soar absurdo hoje, mas era um fato aceito pela ciência da época. "O Holocausto não ocorreu no vácuo. Ele seguiu décadas de crescente aceitação científica à desigualdade entre os homens", diz o alemão Henry Friedlander, historiador e autor de The Origins of Nazi Genocide ("As origens do Genocídio Nazista", sem versão brasileira). Friedlander se refere a um conceito nascido no século 19 nas melhores universidades: a eugenia.

A eugenia surgiu sob o impacto da publicação, em 1859, de um livro que mudaria para sempre o pensamento ocidental: A Origem das Espécies, de Charles Darwin. Darwin mostrou que as espécies não são imutáveis, mas evoluem gradualmente a partir de um antepassado comum à medida que os indivíduos mais aptos vivem mais e deixam mais descendentes. Pela primeira vez, o destino do mundo estava nas mãos da natureza, e não nas de Deus.

Darwin restringiu sua teoria ao mundo natural, mas outros pensadores a adaptaram - de um jeito meio torto - às sociedades humanas. O mais destacado entre eles foi o matemático inglês Francis Galton, primo de Darwin. Em 1865, ele postulou que a hereditariedade transmitia características mentais - o que faz sentido. Mas algumas idéias de Galton eram bem mais esquisitas. Por exemplo, ele dizia que, se os membros das melhores famílias se casassem com parceiros escolhidos, poderiam gerar uma raça de homens mais capazes. A partir das palavras gregas para "bem" e "nascer", Galton criou o termo "eugenia" para batizar essa nova teoria.

Galton se inspirou nas obras então recém-descobertas de Gregor Mendel, um monge checo morto 12 anos antes que passaria à história como fundador da genética. Ao cruzar pés de ervilhas, Mendel havia identificado características que governavam a reprodução, chamando-as de dominantes e recessivas. Quando ervilhas de casca enrugada cruzam com as cascas lisa, o descendente tende a ter casca enrugada, pois esse gene é dominante.

Os eugenistas viram na genética o argumento para justificar seu racismo. Eles interpretaram as experiências de Mendel assim: casca enrugada é uma 'degeneração' (hoje sabe-se que estavam errados - tratava-se apenas de uma variação genética, algo ótimo para a sobrevivência). Misturar genes bons com 'degenerados', para eles, estragaria a linhagem. Para evitar isso, só mantendo a raça 'pura' - e aí eles não estavam mais falando de ervilhas. O eugenista Madison Grant, do Museu Americano de História Natural, advertia em 1916: "O cruzamento entre um branco e um índio faz um índio, entre um branco e um hindu faz um indu, entre qualquer raça européia e um judeu faz um judeu".

As idéias eugenistas fizeram sucesso entre as elites intelectuais de boa parte do Ocidente, inclusive as brasileiras. Mas houve um país em que elas se desenvolveram primeiro, e não foi a Alemanha: foram os EUA. Não tardou até que os eugenistas de lá começassem a querer transformar suas teorias em políticas públicas. "Em suas mentes, as futuras gerações dos geneticamente incapazes deveriam ser eliminadas", diz o jornalista americano Edwin Black, autor de A Guerra contra os Fracos. A miscigenação deveria ser proibida.

Programas de engenharia humana começaram a surgir, inspirados por técnicas advindas de estábulos e galinheiros. O zoólogo Charles Davenport, líder do movimento nos EUA, acreditava que os humanos poderiam ser criados e castrados como trutas e cavalos. Instituições de prestígio, como a Fundação Rockefeller e o Instituto Carnegie, doaram fundos para as pesquisas, universidades de primeira linha, como Stanford, ministraram cursos. Os eugenistas americanos ergueram escritórios de registros de 'incapazes', criaram testes de QI para justificar seu encarceramento e conseguiram que 29 Estados fizessem leis para esterilizá-los.

As primeiras vítimas foram pobres da Virgínia, e depois negros, judeus, mexicanos, europeus do sul, epilépticos e alcoólatras. Segundo Black, 60 mil pessoas foram esterilizadas á força nos EUA. Em seguida, países como a Suécia e a Finlândia começaram programas parecidos.

Portanto, quando a Alemanha de Hitler começou a esterilizar deficientes físicos e mentais, em 1934, não estava inventando nada. Só que eles foram mais longe. "Hitler está nos vencendo em nosso próprio jogo", indignou-se o medico americano Joseph DeJarnette, que castrava pobres. Em 1939, os alemães começaram a matar deficientes, num programa de "eutanásia forçada". Médicos usaram o gás inseticida Zyklon B para eliminar 70 mil pessoas "indignas de viver". O programa foi suspenso após protestos, mas serviu de ensaio para os campos de concentração, onde Zyklon B exterminaria qualquer um que ameaçasse o projeto da raça pura e a conseqüente "melhora da humanidade".

"Hitler conseguiu recrutar mais seguidores entre alemães equilibrados ao afirmar que a ciência estava a seu lado", diz Black. "Seu vice, Rudolf Hess", dizia que o nacional-socialismo não era nada além de biologia aplicada." Com o carimbo da ciência, ainda que meio falsificado, ficou mais fácil compactuar com o absurdo nazista."

O interessante desta história é a proximidade com o caso atual das células-tronco. É o uso da ciência como justificativa para o extermínio. Os operadores do sistema mostram e fixam as descrições no futuro, a "melhora da humanidade", a raça pura, sem doenças, etc. Porém, não mostram os meios e os custos para se atingir o futuro e realizar os objetivos que perseguem.

É exatamente o que temos com as tais células-tronco. Mostram o futuro, a cura de doenças (já arranjaram um monte de doentes incuráveis para acompanhar a caravana da liberação do extermínio, ou seja, para sensibilizar e enganar a sociedade sobre suas pretensões), novos tratamentos, etc. Porém, não mostram os meios e os custos para se atingir o futuro que descrevem. Não dizem que as pesquisas envolve o extermínio de embriões e fetos ou o extermínio de vida que eles consideram inviável. Usam, mais uma vez, o carimbo da ciência, para justificar práticas de extermínio.

Contudo, assim como na história dos Nazistas, o começo não é tão violento quanto o meio e o final da história. No caso das células-tronco o começo envolve apenas alguns embriões e alguns fetos considerados inviáveis. Nada mais do que isto. Porém, a ampliação das pesquisas ou o advento de uma 'possível' descoberta irá gerar uma grande demanda por mais embriões e fetos.

Então, já não buscaram mais embriões e fetos inviáveis, pois já utilizaram tudo o que existia nos estoques. Logo, começarão a buscar e gerar novas fontes. Podem, inclusive, gerar um mercado de embriões, incentivar a produção de fertilização in vitro para produzir embriões e fetos, ou então, trabalharem para a liberalização do aborto. As mães abortam nas clínicas científicas que não cobram nada pelo serviço e ainda pagam uma quantia para a mãe do exterminado. fazem isto para ficarem com o feto que irão utilizar nas pesquisas ou como matéria-prima de seus medicamentos.

A mídia está gerando uma forte neblina para obscurecer a consciência da população. Fixa nos resultados e não conta o custo para se alcançar tais objetivos, ou seja, não diz quantos serão exterminado pelas pesquisas e depois pelos processos industriais que usam céluluas-tronco para produzir medicamentos, etc....

Asas cortadas
Lendro Konder -- Retratos do Brasil, Ed. Política, 1984, Vol. II, p. 417-418

Questionada até então acerca de seu valor utilitário, somente nos anos 50 a filosofia começa a recuperar o espaço que lhe é próprio.

Quem somos nós ? Para onde vamos ? Quais são, exatamente, as responsabilidades que temos, uns em relação aos outros ? O que devemos considerar como essencial na nossa vida ? Em que medida podemos confiar nos nossos conhecimentos ? Essas e outras questões de natureza filosófica têm-se colocado no caminho dos brasileiros mais ou menos com a mesma insistência desafiadora com que se têm apresentado a todos os povos do mundo.

Por serem muito amplas, muito gerais, as questões de que se ocupa a filosofia desbordam do campo particular de cada ciência e nos põem em contato com a infinitude do real, com a irredutibilidade do real ao saber. Os homens são levados a buscar respostas nas ciências (ou na religião), mas as perguntas reaparecem sempre, numa clara demonstração de que se referem a problemas que não admitem soluções definitivas.

Não é preciso ser um sábio para filosofar. Todos filosofamos, quando procuramos fundamentar nossas opiniões sobre a vida em geral, sobre o mundo, sobre o futuro da humanidade, sobre o que é justo e injusto. Mas o aprofundamento da reflexão filosófica depende de estudos e discussões, depende de esforço e disciplina.

A filosofia se manifesta espontaneamente, no pensamento cotidiano, mas, para produzir todos os seus frutos, demanda um laborioso aprendizado. E esse aprendizado, por sua vez, requer investimentos; sua importância precisa ser efetivamente reconhecida pela sociedade.

Quais têm sido as condições proporcionadas pela sociedade brasileira à filosofia ? Dificilmente elas poderiam ter sido mais hostis do que foram. As classes dominantes nunca se preocuparam com problemas estratégicos: bastava-lhes improvisar medidas paliativas, manobras táticas de efeito imediato. Uma estrutura elitista e rudemente autoritária mantinha as massas populares desorganizadas, impossibilitadas de participar nos processos em que se decidiam as grandes questões nacionais.

Tanto a vida política como a vida cultural giravam em torno de um número extremamente reduzido de pessoas. As controvérsias não se aprofundavam teoricamente, porque ficavam marcadas pela estreiteza de horizontes dos grupos oligárquicos e das pequenas confrarias de privilegiados.

Difundia-se a convicção, cada vez mais generalizada, de que a qualidade da argumentação, não tinha nenhuma importância: o que contava era a qualidade - o poder - de quem estava no palco da política e da cultura. A filosofia sofria pressões instrumentalizadoras. Para que empenhar-se em ter razão, se isso não valia de nada, se o que realmente importava era ter força ? Para que tratar de articular laboriosamente o pensamento e desenvolver sua capacidade de persuasão no confronto sério de correntes de interpretação diversas ?

Valia mais a pena investir as energias intelectuais na preparação e execução de "golpes" pragmaticamente capazes de derrubar os adversários, os rivais.

Os debates se davam em torno de posições predeterminadas

O público que podia acompanhar as polêmicas era muito reduzido; e os poucos cidadãos a que os debatedores se dirigiam já tinham posição tomada, estavam filiados a um ou ao outro dos dois lados em choque: ou não aceitariam nunca o pensamento exposto ou já o tinham aceitado previamente. O que importava então era o impacto e não a solidez do raciocínio. A "torcida" esperava jogadas brilhantes ou truculentas e os jogadores tratavam de lhe dar o que ela queria: piruetas retóricas, esquemas simplistas, sarcasmo grosseiro, insultos.

A crítica de idéias escorregava facilmente para as ofensas pessoais. Jorge Amado ridicularizava as "gordas nádegas" de Gustavo Barroso. Luís Carlos Prestes chamou Juarez Távora, no começo dos anos 30, de "imbecil" e de "safadíssimo", sem que ocorresse a qualquer dos seus contemporâneos observar-lhe que havia incoerência no xingamento, já que a safadeza, em grau superlativo, exige uma esperteza que é incompatível com a imbecilidade.

Vivia-se numa sociedade na qual as idéias valiam muito menos pelo conhecimento que podiam do que por seu uso "pugilístico" (ou como instrumento para obtenção de prestígio). O imediatismo, o utilitarismo e o pragmatismo cultivados pela ideologia dominante cortavam as asas da teoria, tornavam a reflexão incapaz de grandes vôos. A ideologia dominante interpelava, cinicamente: "Para que serve a filosofia ?" Se não servia para nada - se não se dispunha a servir - era caracterizada como pura perda de tempo. O sistema que roubava o espaço em que a filosofia podia florescer tinha o desplante de condená-la por não possuir um espaço próprio.

Essa situação, evidentemente, teve reflexos muito negativos sobre a elaboração filosófica entre nós. Acumulavam-se os obstáculos nos caminhos daqueles que procuravam criticar as falácias da linguagem, as ilusões do dado, os enganos da aparência. Tanto os católicos tradicionalistas como os positivistas de diversos matizes revelaram-se incapazes de aprender toda a riqueza das mediações e toda a complexidade das contradições da nossa realidade.

Os nossos filósofos ficavam, com freqüência, reduzidos à condição de epígonos dos pensadores europeus, diante dos quais eram levados a assumir postura reverencial. Quando tentavam reagir e procuravam ser originais, a ideologia dominante os desviava para inócuas combinações ecléticas ou os seduzia com máscaras bizarras provincianas. E depois essa mesma ideologia dominante tratava de convencer o grande público com a tese de que tudo acontecia porque o brasileiro não tinha "vocação para a filosofia".

Pressionada, a filosofia deslocou-se para a literatura

Apesar de toda essa pressão hostil, a filosofia não desapareceu da vida cultural brasileira. Nossos intelectuais, ao longo dos séculos, abordaram temas filosóficos. Os que insistiram em fazê-lo de forma sistemática expuseram suas idéias à erosão do ambiente adverso e não conseguiram nos legar grandes realizações.

Independentemente de sua coragem cívica, o materialista baiano Domingos Guedes Cabral (1852-1883) não nos ajuda a compreender melhor as relações entre o cérebro e o pensamento. O franciscano Mont'Alverne (1784-1858) não acrescentou nada às idéias - que, em si mesmas, já eram poucas significativas - do francês Victor Cousin. Miguel Lemos (1854-1916) se limitou, no essencial, a divulgar o pensamento de Comte.

Mas a filosofia, reagindo contra essa erosão, se deslocou para um terreno onde não podia se desenvolver de forma sistemática, porém conseguia sobreviver: foi acolhida nas artes e na literatura. E o resultado é que as obras de alguns artistas e escritores brasileiros apresentam acenos filosóficos que chegam a oferecer interesse maior que o dos esforços metódicos dos nossos pensadores.

Um exemplo disso ? Machado de Assis. Se compararmos os "momentos" filosóficos de Machado ao tratado que seu contemporâneo Farias Brito (1864-1917) dedicou à 'Finalidade do MUndo', não poderemos deixar de constatar que o pensamento do autor do 'Quincas Borba' está mais vivo que o do outro. Também o poeta Carlos Drummond de Andrade pode ser lembrado para confirmar o que dizemos: os fragmentos de filosofia que se acham em sua obra parecem bem mais instigantes que as idéias sistematizadas pelo douto jesuíta Leonel Franca (1893-1948).

Nestas últimas três décadas, com o surto de desenvolvimento capitalistas, estão surgindo possibilidades novas para a filosofia no Brasil; ela está lutando para recuperar o terreno que lhe é próprio. Estáa mostrando vitalidade e ambição. Alguns êxitos que ela já obteve são animadores: o pensamento, entre nós, está se universalizando.

Um estudioso europeu, hoje, teria certamente algo a aprender lendo, por exemplo, escritos de Gerd Bornheim sobre Sartre, de Marilena Chauí sobre Espinoza, de Carlos Nelson Coutinho sobre Gramsci, de Bento Prado Júnior sobre Rousseau, de José Arthur Gianotti sobre Marx, de Emanuel Carneiro Leão sobre Heidegger, ou de Henrique Cláudio de Lima Vaz sobre Hegel. Mas o que é mais importante é que os brasileiros, lendo esses nossos compatriotas, poderão ver a filosofia alçando vôo, com asas novas...