Reescrevendo a história
José Carlos Ruy -- Retratos do Brasil, Ed. Política, 1984, Vol. II, p. 381-382
No final do Regime Militar se divisavam sinais claros de que a forma de contar a história do País mudava para uma perspectiva mais ampla e democrática.
Contar a história é uma atividade que reflete as convicções políticas e sociais das classes e grupos sociais aos quais o historiador não só traduz as idéias daqueles que dominam, mas também deixa transparecer a visão do mundo dos grupos emergentes, que lutam contra a hegemonia política, econômica, social e ideológica das classes que estão no poder.
Cada classe busca no passado os fatos que compõem o mosaico de sua visão de mundo - podemos dizer esquematicamente. Procura seus heróis e valoriza os momentos mais criativos de seus antepassados de classe, momento em que - agindo em defesa de seus próprios objetivos - eles puderam representar a vontade geral da sociedade.
Por isso a história é uma ciência que está em revisão constante. A medida que o processo democrático se aprofunda, a história tende a ser contada do ponto de vista de camadas mais amplas da população. "É o desenvolvimento da consciência social e política do povo que exige a revisão de nossa história", reconheceu o historiador José Honorório Rodrigues, numa conferência de 1965.
A historiografia brasileira oferece exemplos disso. A obra do historiador do século passado Francisco Adolfo Varnhagen é um deles. Segundo José Honorio Rodrigues Varnhagen foi o principal responsável "pela criação da história oficial, que sempre defende a razão do Estado e com ela se identifica". Apologista da dinastia dos Bragança, protegido de Pedro II, Varnhagen inaugurou também a versão de que nossa Independência teria sido pacífica, a despeito das lutas na Bahia e no Maranhão, que envolveram um número de soldados maior do que o mobilizado pela campanha de Simón Bolivar ! Caracteristicamente, Varnhagen valorizou em excesso a luta dos colonos pernambucanos, liderados pelos grandes senhores de terras e de escravos, contra a invasão holandesa, no século 17.
O resgate da memória de Tiradentes e sua ascensão ao panteão dos heróis nacionais é outro exemplo de como as classes contam a história. Durante o Império, Tirantes foi relegado a um segundo plano, e Varnhagen - na primeira edição de sua 'História Geral do Brasil', de 1857 - chamou-o de insignificante e indiscreto, a quem a morte na forca atribuiu méritos que não tinha. Afinal, Varnhagen era o historiador da classe e da dinastia que condenara Tiradentes, classe à qual também o traidor Joaquim Silvério dos Reis se ligou em 1791, desposando uma das filhas do oligarca Luís Alves de Freitas Belo. Outra filha desse personagem se casou, depois, com Francisco de Lima e Silva, um dos chefes militares mais eminentes do Primeiro Reinado, regente do Império durante a menoridade de Pedro II e pai de Luiz Alves de Lima e Silva, o duque de Caxias.
Dessa forma, o traidor da Inconfidência Mineira foi tio por afinidade, do duque de Caxias - o patrono do Exército -, o que denota ligações familiares e de classe que realmente não permitiam a valorização da atividade conspiratória do alferes.
Pela atuação do movimento republicano e posterior advento da República, o papel de Tiradentes pode ser reavaliado. A primeira homenagem oficial a ele prestada ocorreu em Minas Gerais, em 1867, quando o presidente da Província e futuro fundador do Partido Republicano, Joaquim Saldanha Marinho, mandou construir um monumento a Tiradentes em Ouro Preto. Após a queda da Monarquia, em 1889, Tiradentes foi transformado em herói nacional.
Com a emergência das classes populares na vida política nacional - intensa depois da Segunda Grande Guerra -, outros heróis de nossa história de origem plebéia tiveram sua memória recuperada. Zumi, líder do Quilombo dos Palmares, e Antônio Conselheiro, dirigente do arraial de Canudos, por exemplo, passaram a ser considerados sob um ponto de vista mais positivo. O primeiro era até então tido como um bandido cujas atividades mereceriam antes fazer parte da crônica policial do que propriamente da história, e Conselheiro foi descrito como um louco místico liderando jagunços fanatizados.
Quando a causa pela qual morreram pode ser identificada como a causa de enormes parcelas do Povo, ambos passaram a ser reivindicados como heróis.
Esses exemplos pretendem mostrar que o reconhecimento dos heróis pelos que contam a história está intimamente relacionado com a atividade daqueles que fazem a história. Assim, durante o Império, um setor da oligarquia, originário do Nordeste, dominava a cena nacional, e seus heróis foram os chamados restauradores pernambucanos, que lutaram contra os invasores holandeses - uma luta que, no entanto, destinava-se a restabelecer a soberania portuguesa sobre o território ocupado.
Com a República, outro setor da oligarquia, localizado principalmente em Minas Gerais e São Paulo, ascende. Traz consigo novos heróis. Tiradentes, o maior deles, personagem central do episódio mais marcante em que esse setor liberal oligárquico esteve envolvido - a Inconfidência Mineira -, é transformado em herói nacional.
Uma hipótese que se pode formular aqui é de que a revisão da história ocorre nos momentos em torno da ruptura insitucional ou social, como no final da Monarquia e do Estado Novo. São períodos em que os problemas mais gerais são amplamente debatidos, e soluções para as questões mais candentes são propostas pelas classes e pelos grupos sociais.
O reexame da história é uma tentativa de detectar esses temas no passado e de reavaliar a solução a eles dada.
Após 30, surgem importantes obras de análise do País
Os anos que se seguiram à revolução de 1930, por exemplo, forma particularmente notáveis: nessa época aparecem obras importantes como as de Gilerto freyre, Caio Prado Júnior, Sérgio Buarque de Holanda, Roberto Simonsen, Azevedo Amaral, entre outros, consolidando algumas das linhas de interpretação histórica ainda dominantes entre os pensadores nacionais. A rica atividade intelectual do período que vai do fim do Estado Novo até pouco depois do golpe militar de 1964 sugere também que a vigência de liberdades democráticas, mesmo que limitadas, propicia momentos criadores para a historiografia.
No início dos anos 80, para algumas correntes intelectuais se tornava mais nítida uma tendência à divisão da história do Brasil baseada não nos grandes eventos políticos, mas nas alternâncias dos modos de produção e nos tipos de relação de trabalho. Um exemplo é a publicação, em 1978, do já clássico 'Escravismo Colonial', de Jacob Gorender.
Com a perspectiva do fim próximo do Regime Militar, alguns sinais muito claros mostravam que mudavam também as atitudes em relação aos heróis homenageados pelo cambaleante Regime Militar. Um caso expressivo: o policial americano e instrutor de polícias políticas latino-americanas Dan Mitrione, morto pelos guerrilheiros tupamaros no Uruguai, foi homenageado, durante o governo Médici, com a atribuição de seu nome a uma rua de Belo Horizonte.
Em 1983, essa homenagem foi cancelada e a rua rebatizada com o nome de José Carlos da Matta Machado - estudante e ex-vice-presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE), assassinado em 1973 pela polícia política pernambucana, durante o governo do mesmo general Médici -, acontecimento carregado de simbologia.
Outro caso: na periferia pobre de São Paulo, durante os saques de abril de 1983, populares arrancaram a placa de uma rua com o nome do general Euclides Figueiredo, pai do último presidente militar, João Figueiredo - o chefe de um regime agonizante e repudiado pelo povo.
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