O autoritarismo da ONG Transparência Brasil
O Diretor-executivo da ONG Transparência Brasil, em uma entrevista para o Jornal do Campus da USP 1-15/11/2007 diz que a Universidade existe em função da produtividade e não do "anseio" das pessoas. Afirmou ainda que estudante não tem que dar opinião. Tem é que ficar calado ! Ainda de acordo com ele, diz o Jornal, dar chance aos estudantes opinarem sobre a vida acadêmica e o futuro da Universidade é um erro que tem levado as escolas à falência.
Eu nunca atribuí muita relevância para a tal ONG Transparência Brasil. E agora, depois dessas falas do tal Direto-Executivo, concluo que esta ONG é uma organização autoritária, anti-democrática, hipócrita e nociva para a sociedade. Ao dizer que o ensino serve para formar mão-de-obra ele denunciou a finalidade escondida da ONG: dar respaldo para a exploração capitalista e alienar os membros da sociedade, tirando dos estudantes o poder de transformação e mudança.
O que ele quer é a imposição dos currículos à revelia da vontade dos estudantes. Contudo, eu pergunto, de quem é a vida que será formatada pelo currículo ? Se é a vida é do estudante, quem deve decidir é ele. É ele que será afetado. Certamente, a mentalidade autoritária gosta de impor para os outros as suas decisões.
Querem afastar os estudantes dos centros decisórios para que possam estabelecer, sem questionamentos, as regras de dominação e controle. É sempre a mesma coisa, o autoritarismo busca sempre determinar o tipo de educação, os conteúdos curriculares, as informações que os estudantes devem ou não ter...Foi por isso que os militares da ditadura mexeram nos curriculos escolares e fizeram as mudanças de cima para baixo.
Contudo, o mais surpreendente na fala do Diretor da ONG Transparência Brasil é a inversão da lógica atual. As escolas faliram, Sr. Diretor, porque os currículos foram modificados de cima para baixo sem ouvir ninguém. Quem mexeu nos currículos foram os militares e fizeram isto sozinhos. Pelo que eu saiba os estudantes não foram chamados para opinar sobre as mudanças curriculares durante a ditadura. Portanto, Sr. Diretor, de onde é que você tirou a informação de que escolas foram a falência porque os estudantes opinaram sobre os currículos ? Qual escola foi a falência por causa disso? Onde e quando ?
Além disso, os currículos dizem respeito à vida do estudante. Por isso, os estudantes deve ter o direito de escolher os modelos curriculares que são de seu interesse e que preenche os seus anseios. Isso é liberdade. Isso é Democracia. Certamente, isso é inaceitável para uma mentalidade autoritária como a sua e da ONG Transparência Brasil...
Chamo a atenção ainda para mais um ponto. Quem lê Hannah Arendt deve ter ouvido falar em banalidade do mal e vazio de pensamento. A educação meramente profissionalizante é uma educação que dissemina o vazio de pensamento, a incapacidade de pensar politicamente e socialmente, de compreender o sentido e o conteúdo das ações que pratica. Eichmann era um indivíduo banal porque não conseguia ver além das regras e das ordens, era um operário padrão dominado pelo vazio de pensamento.
Quem vê a educação como mero centro de formação de mão-de-obra está disseminando o germe totalitário na sociedade. Está tentando transformar as escolas em um centro de formação de Eichmanns, ou seja, um centro de formação de mão-de-obra que forma indivíduos altamente especializados incapazes de ver e pensar em profundidade, incapazes de compreender e ligar as suas ações com o resultado de suas ações.
Exemplos claros disso são alguns físicos e matemáticos. Entendem tudo de física e matemática, porém são completamente analfabetos políticos. São analfabetos funcionais para a política, para a ética, para os Direitos Humanos, etc...Logo, possuem uma visão estreita da realidade. Tão estreita que coloca toda a sociedade em risco.
Enfim, a função da educação não é formar mão-de-obra. Isso é um desvirtuamento completo da educação. A função da educação é formar, para a vida, seres pensantes e conscientes de sua posição na sociedade e no mundo. Seres que respeitem e compreendam a importância de se respeitar as diferenças, as liberdades, as crenças, os direitos, etc. O homem nasceu para pensar, para criar, para ser livre e se relacionar com outros seres... Logo, é para isso que a educação deve formar e preparar o homem.
Transformar a educação e o ensino em formação de mão-de-obra é dizer que o homem nasceu para a indústria, para ser empregado (escravo) de empresas e corporações. Isso é uma mentira. Uma mentira criada para aumentar a quantidade de mão-de-obra no mercado, logo barateá-la, para ampliar os lucros capitalistas. Educação para mão-de-obra não forma pessoas, forma empregados. Educação para mão-de-obra não é uma educação adequada para os seres humanos, pois primeiro deve-se formar o homem, sua consciência, sua moral, sua ética e seus valores. Depois é que se dá treinamento profissional.
É lamentável que a ONG Transparência Brasil tenha uma linha de pensamento nociva aos seres humanos e favorável à dominação e exploração capitalista. O capitalismo precisa ser controlado, humanizado e socializado e isto somente se alcançará formando homens e não empregados. Empregados não pensam, não refletem, não criticam, não se rebelam. Educação profissional serve apenas para formar empregados doceis e manipuláveis, resignados e incapazes de se rebelar diante da exploração, da opressão e das exclusões.
E, para terminar, uma última pergunta: o que o Diretor-executivo da ONG Transparência Brasil tem a ver com o ensino universitário no Brasil ? Por que é que pediram a opinião desse indivíduo obtuso sobre oes estudantes ?
Portanto, a minha conclusão é única: os estudantes devem falar e participar, os filhotes do autoritarismo e do capitalismo selvagem é que devem calar a boca !
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Reflexões de Wilhelm Reich
A tradição é importante. É democrática quando desempenha a sua função natural de prover a nova geração com um conhecimento das boas e más experiências do passado, isto é, a sua função de capacitá-la a aprender às custas dos erros passados a fim de os não repetir.
A tradição torna-se a ruína da democracia quando nega à geração mais nova a possibilidade de escolha; quando tenta ditar o que deve ser encarado como 'bom' e como 'mau' sob novas condições de vida. Os tradicionalistas fácil e prontamente se esquecem de que perderam a capacidade de decidir o que não é tradição.
Por exemplo, o aperfeiçoamento do microscópio não foi conseguido pela destruição do primeiro modelo: o aperfeiçoamento foi realizado com a preservação e o desenvolvimento do modelo primitivo a par com um estágio mais avançado do conhecimento humano. Um microscópio do tempo de Pasteur não capacita o pesquisador moderno a estudar uma virose. Suponha agora que o microscópio de Pasteur tivesse o poder e o descaramento de vetar o microscópio eletrônico.
Os jovens não sentiriam nenhuma hostilidade para com a tradição, não teriam na verdade senão respeito por ela se, sem se arriscar, pudessem dizer: '_ Isto nós o tomaremos de vocês porque é convincente, é justo, diz respeito também à nossa época e é passível de desenvolvimento. Aquilo, entretanto, não podemos aceitar. Era útil e verdadeiro para o seu tempo - seria inútil para nós.' E esses jovens deveriam preparar-se para ouvir dos seus filhos as mesmas palavras.
Outras reflexões: http://direitousp.freevar.com/abertura.htm
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Os quatro pilares da educação
Capítulo 4 do livro Educação, um tesouro a descobrir: Jacques Delor. São Paulo, Unesco/MEC/Cortez, 1998
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Dado que oferecerá meios, nunca antes disponíveis, para a circulação e armazenamento de informações e para a comunicação, o próximo século submeterá a educação a uma dura obrigação que pode parecer, à primeira vista, quase contraditória. A educação deve transmitir, de fato, de forma maciça e eficaz, cada vez mais saberes e saber-fazer evolutivos, adaptados à civilização cognitiva, pois são as bases das competências do futuro. Simultaneamente, compete-lhe encontrar e assinalar as referências que impeçam as pessoas de ficar submergidas nas ondas de informações, mais ou menos efêmeras, que invadem os espaços públicos e privados e as levem a orientar-se para projetos de desenvolvimento individuais e coletivos. À educação cabe fornecer, de algum modo, os mapas de um mundo complexo e constantemente agitado e, ao mesmo tempo, a bússola que permita navegar através dele.
Nesta visão prospectiva, uma resposta puramente quantitativa à necessidade insaciável de educação - uma bagagem escolar cada vez mais pesada - já não é possível nem mesmo adequada. Não basta, de fato, que cada um acumule no começo da vida uma determinada quantidade de conhecimentos de que possa abastecer-se indefinidamente. É, antes, necessário estar à altura de aproveitar e explorar, do começo ao fim da vida, todas as ocasiões de atualizar, aprofundar e enriquecer estes primeiros conhecimentos, e de se adaptar a um mundo em mudança.
Para poder dar resposta ao conjunto das suas missões, a educação deve organizar-se em torno de quatro aprendizagens fundamentais que, ao longo de toda a vida, serão de algum modo para cada indivíduo, os pilares do conhecimento: aprender a conhecer, isto é adquirir os instrumentos da compreensão; aprender a fazer, para poder agir sobre o meio envolvente; aprender a viver juntos, a fim de participar e cooperar com os outros em todas as atividades humanas; finalmente aprender a ser, via essencial que integra as três precedentes. É claro que estas quatro vias do saber constituem apenas uma, dado que existem entre elas múltiplos pontos de contato, de relacionamento e de permuta.
Mas, em regra geral, o ensino formal orienta-se, essencialmente, se não exclusivamente, para o aprender a conhecer e, em menor escala, para o aprender a fazer. As duas outras aprendizagens dependem, a maior parte das vezes, de circunstâncias aleatórias quando não são tidas, de algum modo, como prolongamento natural das duas primeiras. Ora, a Comissão pensa que cada um dos " quatro pilares do conhecimento" deve ser objeto de atenção igual por parte do ensino estruturado, a fim de que a educação apareça como uma experiência global a levar a cabo ao longo de toda a vida, no plano cognitivo como no prático, para o indivíduo enquanto pessoa e membro da sociedade.
Desde o início dos seus trabalhos que os membros da Comissão compreenderam que seria indispensável, para enfrentar os desafios do próximo século, assinalar novos objetivos à educação e, portanto, mudar a idéia que se tem da sua utilidade. Uma nova concepção ampliada de educação devia fazer com que todos pudessem descobrir, reanimar e fortalecer o seu potencial criativo - revelar o tesouro escondido em cada um de nós. Isto supõe que se ultrapasse a visão puramente instrumental da educação, considerada como a via obrigatória para obter certos resultados (saber-fazer, aquisição de capacidades diversas, fins de ordem econômica), e se passe a considerá-la em toda a sua plenitude: realização da pessoa que, na sua totalidade, aprende a ser.
Aprender a conhecer
Este tipo de aprendizagem que visa não tanto a aquisição de um repertório de saberes codificados, mas antes o domínio dos próprios instrumentos do conhecimento pode ser considerado, simultaneamente, como um meio e como uma finalidade da vida humana. Meio, porque se pretende que cada um aprenda a compreender o mundo que o rodeia, pelo menos na medida em que isso lhe é necessário para viver dignamente, para desenvolver as suas capacidades profissionais, para comunicar. Finalidade, porque seu fundamento é o prazer de compreender, de conhecer, de descobrir.
Apesar dos estudos sem utilidade imediata estarem desaparecendo, tal a importância dada atualmente aos saberes utilitários, a tendência para prolongar a escolaridade e o tempo livre deveria levar os adultos a apreciar, cada vez mais, as alegrias do conhecimento e da pesquisa individual. O aumento dos saberes, que permite compreender melhor o ambiente sob os seus diversos aspectos, favorece o despertar da curiosidade intelectual, estimula o sentido crítico e permite compreender o real, mediante a aquisição de autonomia na capacidade de discernir. Deste ponto de vista, há que repeti-lo, é essencial que cada criança, esteja onde estiver, possa ter acesso, de forma adequada, às metodologias científicas de modo a tornar-se para toda a vida " amiga da ciência". Em nível do ensino secundário e superior, a formação inicial deve fornecer a todos os alunos instrumentos, conceitos e referências resultantes dos avanços das ciências e dos paradigmas do nosso tempo.
Contudo, como o conhecimento é múltiplo e evolui infinitamente, torna-se cada vez mais inútil tentar conhecer tudo e, depois do ensino básico, a omnidisciplinaridade é um engodo. A especialização, porém, mesmo para futuros pesquisadores, não deve excluir a cultura geral. " Um espírito verdadeiramente formado, hoje em dia, tem necessidade de uma cultura geral vasta e da possibilidade de trabalhar em profundidade determinado número de assuntos. Deve-se, do princípio ao fim do ensino, cultivar, simultaneamente, estas duas tendências".
A cultura geral, enquanto abertura a outras linguagens e outros conhecimentos permite, antes de tudo, comunicar-se. Fechado na sua própria ciência, o especialista corre o risco de se desinteressar pelo que fazem os outros. Sentirá dificuldade em cooperar, quaisquer que sejam as circunstâncias. Por outro lado, a formação cultural, cimento das sociedades no tempo e no espaço, implica a abertura a outros campos do conhecimento e, deste modo, podem operar-se fecundas sinergias entre as disciplinas. Especialmente em matéria de pesquisa, determinados avanços do conhecimento dão-se nos pontos de interseção das diversas áreas disciplinares.
Aprender para conhecer supõe, antes tudo, aprender a aprender, exercitando a atenção, a memória e o pensamento. Desde a infância, sobretudo nas sociedades dominadas pela imagem televisiva, o jovem deve aprender a prestar atenção às coisas e às pessoas. A sucessão muito rápida de informações mediatizadas, o " zapping" tão freqüente, prejudicam de fato o processo de descoberta, que implica duração e aprofundamento da apreensão. Esta aprendizagem da atenção pode revestir formas diversas e tirar partido de várias ocasiões da vida (jogos, estágios em empresas, viagens, trabalhos práticos de ciências...).
Por outro lado, o exercício da memória é um antídoto necessário contra a submersão pelas informações instantâneas difundidas pelos meios de comunicação social. Seria perigoso imaginar que a memória pode vir a tornar-se inútil, devido à enorme capacidade de armazenamento e difusão das informações de que dispomos daqui em diante. É preciso ser, sem dúvida, seletivo na escolha dos dados a aprender " de cor" mas, propriamente, a faculdade humana de memorização associativa, que não é redutível a um automatismo, deve ser cultivada cuidadosamente. Todos os especialistas concordam em que a memória deve ser treinada desde a infância, e que é errado suprimir da prática escolar certos exercícios tradicionais, considerados como fastidiosos.
Finalmente, o exercício do pensamento ao qual a criança é iniciada, em primeiro lugar, pelos pais e depois pelos professores, deve comportar avanços e recuos entre o concreto e o abstrato. Também se devem combinar, tanto no ensino como na pesquisa, dois métodos apresentados, muitas vezes, como antagônicos: o método dedutivo por um lado e o indutivo por outro. De acordo com as disciplinas ensinadas, um pode ser mais pertinente do que outro, mas na maior parte das vezes o encadeamento do pensamento necessita da combinação dos dois.
O processo de aprendizagem do conhecimento nunca está acabado, e pode enriquecer-se com qualquer experiência. Neste sentido, liga-se cada vez mais à experiência do trabalho, à medida que este se torna menos rotineiro. A educação primária pode ser considerada bem-sucedida se conseguir transmitir às pessoas o impulso e as bases que façam com que continuem a aprender ao longo de toda a vida, no trabalho, mas também fora dele.
Aprender a fazer
Aprender a conhecer e aprender a fazer são, em larga medida, indissociáveis. Mas a segunda aprendizagem está mais estreitamente ligada à questão da formação profissional: como ensinar o aluno a pôr em prática os seus conhecimentos e, também, como adaptar a educação ao trabalho futuro quando não se pode prever qual será a sua evolução? É a esta última questão que a Comissão tentará dar resposta mais particularmente.
Convém distinguir, a este propósito, o caso das economias industriais onde domina o trabalho assalariado do das outras economias onde domina, ainda em grande escala, o trabalho independente ou informal. De fato, nas sociedades assalariadas que se desenvolveram ao longo do século XX, a partir do modelo industrial, a substituição do trabalho humano pelas máquinas tornou-o cada vez mais imaterial e acentuou o caráter cognitivo das tarefas, mesmo na indústria, assim como a importância dos serviços na atividade econômica.
O futuro destas economias depende, aliás, da sua capacidade de transformar o progresso dos conhecimentos em inovações geradoras de novas empresas e de novos empregos. Aprender a fazer não pode, pois, continuar a ter o significado simples de preparar alguém para uma tarefa material bem determinada, para fazê-lo participar no fabrico de alguma coisa. Como conseqüência, as aprendizagens devem evoluir e não podem mais ser consideradas como simples transmissão de práticas mais ou menos rotineiras, embora estas continuem a ter um valor formativo que não é de desprezar.
Da noção de qualificação à noção de competência
Na indústria especialmente para os operadores e os técnicos, o domínio do cognitivo e do informativo nos sistemas de produção, torna um pouco obsoleta a noção de qualificação profissional e leva a que se dê muita importância à competência pessoal. O progresso técnico modifica, inevitavelmente, as qualificações exigidas pelos novos processos de produção. As tarefas puramente físicas são substituídas por tarefas de produção mais intelectuais, mais mentais, como o comando de máquinas, a sua manutenção e vigilância, ou por tarefas de concepção, de estudo, de organização à medida que as máquinas se tornam, também, mais " inteligentes" e que o trabalho se " desmaterializa".
Este aumento de exigências em matéria de qualificação, em todos os níveis, tem várias origens. No que diz respeito ao pessoal de execução a justa posição de trabalhos prescritos e parcelados deu lugar à organização em " coletivos de trabalho" ou " grupos de projeto", a exemplo do que se faz nas empresas japonesas: uma espécie de taylorismo ao contrário. Por outro lado, à indiferenciação entre trabalhadores sucede a personalização das tarefas. Os empregadores substituem, cada vez mais, a exigência de uma qualificação ainda muito ligada, a seu ver, à idéia de competência material, pela exigência de uma competência que se apresenta como uma espécie de coquetel individual, combinando a qualificação, em sentido estrito, adquirida pela formação técnica e profissional, o comportamento social, a aptidão para o trabalho em equipe, a capacidade de iniciativa, o gosto pelo risco.
Se juntarmos a estas novas exigências a busca de um compromisso pessoal do trabalhador, considerado como agente de mudança, torna-se evidente que as qualidades muito subjetivas, inatas ou adquiridas, muitas vezes denominadas " saber-ser" pelos dirigentes empresariais, se juntam ao saber e ao saber-fazer para compor a competência exigida - o que mostra bem a ligação que a educação deve manter, como aliás sublinhou a Comissão, entre os diversos aspectos da aprendizagem. Qualidades como a capacidade de comunicar, de trabalhar com os outros, de gerir e de resolver conflitos, tornam-se cada vez mais importantes. E esta tendência torna-se ainda mais forte, devido ao desenvolvimento do setor de serviços.
A "desmaterialização" do trabalho e a importância dos serviços entre as atividades assalariadas.
As conseqüências sobre a aprendizagem da " desmaterialização" das economias avançadas são particularmente impressionantes se se observar a evolução quantitativa e qualitativa dos serviços. Este setor, muito diversificado, define-se sobretudo pela negativa, não são nem industriais nem agrícolas e que, apesar da sua diversidade, têm em comum o fato de não produzirem um bem material.
Muitos serviços definem-se, sobretudo, em função da relação interpessoal a que dão origem. Podem encontrar-se exemplos disso tanto no setor mercantil que prolifera, alimentando-se da complexidade crescente das economias (especialidades muito variadas, serviços de acompanhamento e de aconselhamento tecnológico, serviços financeiros, contabilísticos ou de gestão), como no setor não comercial mais tradicional (serviços sociais, ensino, saúde etc.).
Em ambos os casos, as atividades de informação e comunicação são primordiais; dá-se prioridade à coleta e tratamento personalizado de informações específicas para determinado projeto. Neste tipo de serviços, a qualidade da relação entre prestador e usuário depende, também muito, deste último. Compreende-se, pois, que o trabalho em questão já não possa ser feito da mesma maneira que quando se trata de trabalhar a terra ou de fabricar um tecido. A relação com a matéria e a técnica deve ser completada com a aptidão para as relações interpessoais. O desenvolvimento dos serviços exige, pois, cultivar qualidades humanas que as formações tradicionais não transmitem, necessariamente e que correspondem à capacidade de estabelecer relações estáveis e eficazes entre as pessoas.
Finalmente, é provável que nas organizações ultratecnicistas do futuro os déficits relacionais possam criar graves disfunções exigindo qualificações de novo tipo, com base mais comportamental do que intelectual. O que pode ser uma oportunidade para os não diplomados, ou com deficiente preparação em nível superior. A intuição, o jeito, a capacidade de julgar, a capacidade de manter unida uma equipe não são de fato qualidades, necessariamente, reservadas a pessoas com altos estudos. Como e onde ensinar estas qualidades mais ou menos inatas? Não se podem deduzir simplesmente os conteúdos de formação, das capacidades ou aptidões requeridas. O mesmo problema põe-se, também, quanto à formação profissional, nos países em desenvolvimento.
O trabalho na economia informal
Nas economias em desenvolvimento, onde a atividade assalariada não é dominante, a natureza do trabalho é muito diferente. Em muitos países da África subsaariana e em alguns países da América Latina e da Ásia, efetivamente, só uma pequena parte da população tem emprego e recebe salário, pois a grande maioria participa na economia tradicional de subsistência. Não existe, rigorosamente falando, referencial de emprego; as competências são, muitas vezes, de tipo tradicional. Por outro lado, a aprendizagem não se destina, apenas, a um só trabalho mas tem como objetivo mais amplo preparar para uma participação formal ou informal no desenvolvimento. Trata-se, freqüentemente, mais de uma qualificação social do que de uma qualificação profissional.
Noutros países em desenvolvimento existe, ao lado da agricultura e de um reduzido setor formal, um setor de economia ao mesmo tempo moderno e informal, por vezes bastante dinâmico, à base de artesanato, de comércio e de finanças que revela a existência de uma capacidade empreendedora bem adaptada às condições locais.
Em ambos os casos, após numerosas pesquisas levadas a cabo em países em desenvolvimento, apercebemo-nos que encaram o futuro como estando estreitamente ligado à aquisição da cultura científica que lhes dará acesso à tecnologia moderna, sem negligenciar com isso as capacidades específicas de inovação e criação ligadas ao contexto local.
Existe uma questão comum aos países desenvolvidos e em desenvolvimento: como aprender a comportar-se, eficazmente, numa situação de incerteza, como participar na criação do futuro?
Aprender a viver juntos, aprender a viver com os outros
Sem dúvida, esta aprendizagem representa, hoje em dia, um dos maiores desafios da educação. O mundo atual é, muitas vezes, um mundo de violência que se opõe à esperança posta por alguns no progresso da humanidade. A história humana sempre foi conflituosa, mas há elementos novos que acentuam o perigo e, especialmente, o extraordinário potencial de autodestruição criado pela humanidade no decorrer do século XX. A opinião pública, através dos meios de comunicação social, torna-se observadora impotente e até refém dos que criam ou mantêm os conflitos. Até agora, a educação não pôde fazer grande coisa para modificar esta situação real. Poderemos conceber uma educação capaz de evitar os conflitos, ou de os resolver de maneira pacífica, desenvolvendo o conhecimento dos outros, das suas culturas, da sua espiritualidade?
E de louvar a idéia de ensinar a não-violência na escola, mesmo que apenas constitua um instrumento, entre outros, para lutar contra os preconceitos geradores de conflitos. A tarefa é árdua porque, muito naturalmente, os seres humanos têm tendência a supervalorizar as suas qualidades e as do grupo a que pertencem, e a alimentar preconceitos desfavoráveis em relação aos outros. Por outro lado, o clima geral de concorrência que caracteriza, atualmente, a atividade econômica no interior de cada país, e sobretudo em nível internacional, tem tendência de dar prioridade ao espírito de competição e ao sucesso individual. De fato, esta competição resulta, atualmente, numa guerra econômica implacável e numa tensão entre os mais favorecidos e os pobres, que divide as nações do mundo e exacerba as rivalidades históricas. É de lamentar que a educação contribua, por vezes, para alimentar este clima, devido a uma má interpretação da idéia de emulação.
Que fazer para melhorar a situação? A experiência prova que, para reduzir o risco, não basta pôr em contato e em comunicação membros de grupos diferentes (através de escolas comuns a várias etnias ou religiões, por exemplo). Se, no seu espaço comum, estes diferentes grupos já entram em competição ou se o seu estatuto é desigual, um contato deste gênero pode, pelo contrário, agravar ainda mais as tensões latentes e degenerar em conflitos. Pelo contrário, se este contato se fizer num contexto igualitário, e se existirem objetivos e projetos comuns, os preconceitos e a hostilidade latente podem desaparecer e dar lugar a uma cooperação mais serena e até à amizade.
Parece, pois, que a educação deve utilizar duas vias complementares. Num primeiro nível, a descoberta progressiva do outro. Num segundo nível, e ao longo de toda a vida, a participação em projetos comuns, que parece ser um método eficaz para evitar ou resolver conflitos latentes.
A descoberta do outro
A educação tem por missão, por um lado, transmitir conhecimentos sobre a diversidade da espécie humana e, por outro, levar as pessoas a tomar consciência das semelhanças e da interdependência entre todos os seres humanos do planeta. Desde tenra idade a escola deve, pois, aproveitar todas as ocasiões para esta dupla aprendizagem. Algumas disciplinas estão mais adaptadas a este fim, em particular a geografia humana a partir do ensino básico e as línguas e literaturas estrangeiras mais tarde.
Passando à descoberta do outro, necessariamente, pela descoberta de si mesmo, e por dar à criança e ao adolescente uma visão ajustada do mundo, a educação, seja ela dada pela família, pela comunidade ou pela escola, deve antes de mais ajudá-los a descobrir-se a si mesmos. Só então poderão, verdadeiramente, pôr-se no lugar dos outros e compreender as suas reações. Desenvolver esta atitude de empatia, na escola, é muito útil para os comportamentos sociais ao longo de toda a vida. Ensinando, por exemplo, aos jovens a adotar a perspectiva de outros grupos étnicos ou religiosos podem-se evitar incompreensões geradoras de ódio e violência entre os adultos. Assim, o ensino da história das religiões ou dos costumes pode servir de referência útil para futuros comportamentos.
Por fim, os métodos de ensino não devem ir contra este reconhecimento do outro. Os professores que, por dogmatismo, matam a curiosidade ou o espírito crítico dos seus alunos, em vez de os desenvolver, podem ser mais prejudiciais do que úteis. Esquecendo que funcionam como modelos, com esta sua atitude arriscam-se a enfraquecer por toda a vida nos alunos a capacidade de abertura à alteridade e de enfrentar as inevitáveis tensões entre pessoas, grupos e nações. O confronto através do diálogo e da troca de argumentos é um dos instrumentos indispensáveis à educação do século XXI.
Tender para objetivos comuns
Quando se trabalha em conjunto sobre projetos motivadores e fora do habitual, as diferenças e até os conflitos interindividuais tendem a reduzir-se, chegando a desaparecer em alguns casos. Uma nova forma de identificação nasce destes projetos que fazem com que se ultrapassem as rotinas individuais, que valorizam aquilo que é comum e não as diferenças. Graças à prática do desporto, por exemplo, quantas tensões entre classes sociais ou nacionalidades se transformaram, afinal, em solidariedade através da experiência e do prazer do esforço comum! E no setor laboral quantas realizações teriam chegado a bom termo se os conflitos habituais em organizações hierarquizadas tivessem sido transcendidos por um projeto comum!
A educação formal deve, pois, reservar tempo e ocasiões suficientes em seus programas para iniciar os jovens em projetos de cooperação, logo desde a infância, no campo das atividades desportivas e culturais, evidentemente, mas também estimulando a sua participação em atividades sociais: renovação de bairros, ajuda aos mais desfavorecidos, ações humanitárias, serviços de solidariedade entre gerações... As outras organizações educativas e associações devem, neste campo, continuar o trabalho iniciado pela escola. Por outro lado, na prática letiva diária, a participação de professores e alunos em projetos comuns pode dar origem à aprendizagem de métodos de resolução de conflitos e constituir uma referência para a vida futura dos alunos, enriquecendo a relação professor/aluno.
Aprender a ser
Desde a sua primeira reunião, a Comissão reafirmou, energicamente, um princípio fundamental: a educação deve contribuir para o desenvolvimento total da pessoa - espírito e corpo, inteligência, sensibilidade, sentido estético, responsabilidade pessoal, espiritualidade. Todo o ser humano deve ser preparado, especialmente graças à educação que recebe na juventude, para elaborar pensamentos autônomos e críticos e para formular os seus próprios juízos de valor, de modo a poder decidir, por si mesmo, como agir nas diferentes circunstâncias da vida.
O relatório Aprender a ser (1972) exprimia, no preâmbulo, o temor da desumanização do mundo relacionada com a evolução técnica4. A evolução das sociedades desde então e, sobretudo, o enorme desenvolvimento do poder mediático veio acentuar este temor e tornar mais legítima ainda a injunção que lhe serve de fundamento. É possível que no século XXI estes fenômenos adquiram ainda mais amplitude. Mais do que preparar as crianças para uma dada sociedade, o problema será, então, fornecer-lhes constante-mente forças e referências intelectuais que lhes permitam compreender o mundo que as rodeia e comportar-se nele como atores responsáveis e justos. Mais do que nunca a educação parece ter, como papel essencial, conferir a todos os seres humanos a liberdade de pensamento, discernimento, sentimentos e imaginação de que necessitam para desenvolver os seus talentos e permanecerem, tanto quanto possível, donos do seu próprio destino.
Este imperativo não é apenas de natureza individualista: a experiência recente mostra que o que poderia aparecer, somente, como uma forma de defesa do indivíduo perante um sistema alienante ou tido como hostil, é também, por vezes, a melhor oportunidade de progresso para as sociedades. A diversidade das personalidades, a autonomia e o espírito de iniciativa, até mesmo o gosto pela provocação, são os suportes da criatividade e da inovação. Para reduzir a violência ou lutar contra os diferentes flagelos que afetam a sociedade os métodos inéditos retirados de experiências no terreno já deram prova da sua eficácia.
Num mundo em mudança, de que um dos principais motores parece ser a inovação tanto social como econômica, deve ser dada importância especial à imaginação e à criatividade; claras manifestações da liberdade humana elas podem vir a ser ameaçadas por uma certa estandardização dos comportamentos individuais. O século XXI necessita desta diversidade de talentos e de personalidades, mais ainda de pessoas excepcionais, igualmente essenciais em qualquer civilização.
Convém, pois, oferecer às crianças e aos jovens todas as ocasiões possíveis de descoberta e de experimentação estética, artística, desportiva, científica, cultural e social - , que venham completar a apresentação atraente daquilo que, nestes domínios, foram capazes de criar as gerações que os precederam ou suas contemporâneas. Na escola, a arte e a poesia deveriam ocupar um lugar mais importante do que aquele que lhes é concedido, em muitos países, por um ensino tornado mais utilitarista do que cultural. A preocupação em desenvolver a imaginação e a criatividade deveria, também, revalorizar a cultura oral e os conhecimentos retirados da experiência da criança ou do adulto.
Assim a Comissão adere plenamente ao postulado do relatório Aprender a ser: " O desenvolvimento tem por objeto a realização completa do homem, em toda a sua riqueza e na complexidade das suas expressões e dos seus compromissos: indivíduo, membro de uma família e de uma coletividade, cidadão e produtor, inventor de técnicas e criador de sonhos".
Este desenvolvimento do ser humano, que se desenrola desde o nascimento até à morte, é um processo dialético que começa pelo conhecimento de si mesmo para se abrir, em seguida, à relação com o outro. Neste sentido, a educação é antes de mais nada uma viagem interior, cujas etapas correspondem às da maturação contínua da personalidade. Na hipótese de uma experiência profissional de sucesso, a educação como meio para uma tal realização é, ao mesmo tempo, um processo individualizado e uma construção social interativa.
E escusado dizer que os quatro pilares da educação, acabados de descrever, não se apóiam, exclusivamente, numa fase da vida ou num único lugar. Como se verá no capítulo seguinte, os tempos e as áreas da educação devem ser repensados, completar-se e interpenetrar-se de maneira a que cada pessoa, ao longo de toda a sua vida, possa tirar o melhor partido de um ambiente educativo em constante ampliação.
Pistas e recomendações
• A educação ao longo de toda a vida baseia-se em quatro pilares: aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a viver juntos, aprender a ser.
• Aprender a conhecer, combinando uma cultura geral, suficientemente vasta, com a possibilidade de trabalhar em profundidade um pequeno número de matérias. O que também significa: aprender a aprender, para beneficiar-se das oportunidades oferecidas pela educação ao longo de toda a vida.
• Aprender a fazer, a fim de adquirir, não somente uma qualificação profissional mas, de uma maneira mais ampla, com-petências que tornem a pessoa apta a enfrentar numerosas situações e a trabalhar em equipe. Mas também aprender a fazer, no âmbito das diversas experiências sociais ou de trabalho que se oferecem aos jovens e adolescentes, quer espontaneamente, fruto do contexto local ou nacional, quer formalmente, graças ao desenvolvimento do ensino alternado com o trabalho.
• Aprender a viver juntos desenvolvendo a compreensão do outro e a percepção das interdependências - realizar projetos comuns e preparar-se para gerir conflitos - no respeito pelos valores do pluralismo, da compreensão mútua e da paz.
• Aprender a ser, para melhor desenvolver a sua personalidade e estar à altura de agir com cada vez maior capacidade de autonomia, de discernimento e de responsabilidade pessoal. Para isso, não negligenciar na educação nenhuma das potencialidades de cada indivíduo: memória, raciocínio, sentido estético, capacidades físicas, aptidão para comunicar-se.
• Numa altura em que os sistemas educativos formais tendem a privilegiar o acesso ao conhecimento, em detrimento de outras formas de aprendizagem, importa conceber a educação como um todo. Esta perspectiva deve, no futuro, inspirar e orientar as reformas educativas, tanto em nível da elaboração de programas como da definição de novas políticas pedagógicas.
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Considerações críticas da Lei 5.540/68
INTRODUÇÃO
O populismo no Brasil foi uma força ambígua. Ideologicamente, por exemplo, diante do aumento das contradições sociais, se identificou com as forças sociais de esquerda. Seu inconformismo com a “ordem” injusta do capitalismo, de marca americana, avolumou-se e tomou dimensões nacionais. O capital monopolista norte-americano era questionado em sua forma de exploração neocolonial. Os gritos de “americanos, go home” e “fora MEC-USAID” causavam fortes preocupações aos detentores do capital.
Para os militares, os responsáveis pelo insuficiente desempenho econômico e por toda insubordinação social eram os governos populistas, incoerentes, “comunistóides” e corruptos. O capital, assustado pela fraqueza desses governos na repressão aos movimentos “subversivos”, apela para a velha forma fascista que, fardada de militar, com o golpe de 1964, põe fim à “desordem” social e, com ela, à claudicante democracia populista.
Com esse golpe também se põe fim aos ricos movimentos de educação popular dos anos 60. Extingue-se o debate educacional através de cassações, exílios, perseguições, torturas e destruição da literatura marxista. É uma história conhecida. Conseqüentemente, o debate educacional, desse período, refluiu às catacumbas, à hibernação, e o Estado desencadeou um outro debate, inscrito no Governo.
Tal foi a violência do golpe desferido contra a organização e a livre expressão dos estudantes e dos educadores que foi preciso compensá-lo com importantes iniciativas e reformas educacionais revestidas da preocupação com a autonomia nacional e com alguma democracia institucional.
O debate era influenciado pela ideologia da neutralidade científica, pelo eficientismo da tecnologia educacional e pela teoria do capital humano. O MEC, por exemplo, acreditou ser possível uma lei justa, avançada, democraticamente discutida, apenas porque homens esclarecidos, “apartidários”, eram convidados a integrar comissões de alto nível e porque o Congresso formalmente funcionava, quando, na verdade, a sociedade inteira era proibida de se organizar e debater livremente.
Em outras palavras, a educação foi diretamente atingida e assimilada pelo regime político dominante que sempre oscilava entre o totalitarismo pleno ou disfarçado e uma democracia impregnada de autoritarismo. A prova dessa inconstância aparece na legislação que orienta o ensino público, bastando observar o cronograma histórico das LDB’s (Lei 4024/61;Lei 5540/68 Lei 5692/71 e Lei 9394/96) para se verificar o reflexo do momento social, político e econômico na estrutura educacional.
Enfim, todas as legislações sobre Educação Superior no Brasil foram, de alguma forma, inovadoras e ocasionaram mudanças na estrutura de ensino, ou seja, modificaram o ambiente acadêmico, alteraram hábitos arraigados e atacaram o conservadorismo da academia. Contudo, todas elas procuraram modernizar o Ensino Superior para adaptá-lo às mudanças sociais, políticas e econômicas estabelecidas e vigentes naquele momento histórico.
2. CONTEXTO HISTÓRICO
Mesmo após a revolução de 30, com exceção feita à Universidade do Distrito Federal, logo vítima da repressão da ditadura do Estado Novo, e da criação inovadora, em 1934, da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, não existiam, no Brasil, condições para a concretização de uma autêntica vida universitária.
No inicio da década de 60, erguiam-se vozes em torno do problema da escola superior brasileira. Em maio de 1960, a União Nacional dos Estudantes (UNE) promove o Primeiro Seminário Nacional da Reforma Universitária. Dele resulta um documento que afirma ser a universidade incapaz de elaborar uma cultura nacional e reivindica uma reforma universitária que possibilite à universidade a participação na construção de um modelo econômico definido por interesses nacionais.
O ideal de reconstruir a universidade passou a associar-se definitivamente à solução dos problemas econômicos, sociais e políticos do País. A democratização interna é vista como necessária para a construção de uma universidade nova, criadora, crítica e socialmente atuante. Reivindica-se a autonomia de pensamento na universidade e o desenvolvimento econômico independente do País — uma universidade livre numa sociedade livre.
A criação da Universidade de Brasília, em 1961, pode ser vista como tentativa de concretização dessa reforma. Os intelectuais Anísio Teixeira e Darcy Ribeiro, entre outros, baseados na integração do ensino com a pesquisa, propunham a organização de faculdades e institutos centrais e a criação de cursos introdutórios (que dariam a formação básica para cada área de conhecimento), cursos de bacharelado, mestrado e doutorado.
A fase de implantação dos institutos estava em seu momento decisivo quando, em 9 de abril de 1964, a UnB (Universidade de Brasília) é invadida a mando do marechal Castelo Branco. Fechada a universidade, destituídos os diretores, presos professores e alunos, queimados os livros “subversivos” da biblioteca, estava destruído um símbolo de luta pela superação do atraso cultural e do subdesenvolvimento brasileiro. Foi preciso contentar-se com o caráter da reforma universitária empreendida pelo Regime Militar.
O presidente Castello Branco, ao tomar a reforma nas mãos, realmente romperia com o padrão da escola superior do passado, mas na direção dos interesses que podem ser resumidos na frase: “O que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil”. Neste sentido, a política de repressão a estudantes e intelectuais, após o golpe militar, deve ser encarada como parte da necessária desmobilização das resistências à desnacionalização do ensino.
O Regime Militar precisava dispor de uma estrutura legal que preparasse o terreno para adaptar o sistema universitário ao novo modelo econômico que se pretendia implantar. Seria preciso preparar quadros técnicos para as multinacionais que aqui se instalariam, bem como preparar pessoal capaz de mover a infra-estrutura de comunicação, transporte, energia, etc.; necessária para o funcionamento daquelas empresas.
A política universitária pós-64 vai consolidar-se em duas etapas: a primeira, até 1968, onde as medidas tomadas têm um caráter de contenção, tanto da mobilização estudantil como da expansão do sistema. Embora o novo modelo econômico necessitasse de um maior número de profissionais de nível superior, constata-se que o número de vestibulandos entre 1964 e 1968 cresce 120% em relação ao período 60-64, mas o número de vagas entre 64-68 decresce 11% em relação a 60-64. (RETRATO DO BRASIL, Vol II, p. 438-440).
Isto gera uma crescente onda de protesto de docentes e discentes, aumentando a força de mobilização e organização do movimento estudantil, a despeito de o governo já se ter prevenido com medidas repressivas. Por exemplo, a “Lei Suplicy” que extinguiu a autonomia e representatividade das entidades estudantis, transformando-as em apêndice do Ministério da Educação; extinguiu a UNE, as UEEs e os CAs (Uniões Estaduais de Estudantes e Centros Acadêmicos); criou o Diretório Nacional dos Estudantes, que só poderia reunir-se convocado pelo Ministério ou pelo Conselho Federal de Educação e ainda assim no período de férias. Em 1967, pelo Decreto-Lei no 252, ficou determinado que a representação discente se limitasse ao âmbito de cada universidade e sem manifestar-se politicamente.
Na segunda etapa ou seja, pós-68, as medidas repressivas concretizam-se no AI-5 (Ato Institucional no 5) e, no âmbito universitário, no Decreto-Lei no 477/69, que proibia qualquer manifestação de professores, alunos ou funcionários, sob pena de processo, prisão e perda dos direitos. Ë nesta segunda etapa que a reforma universitária se configura em lei. (RETRATO DO BRASIL, Vol II, p. 438-440).
A reforma universitária do Regime Militar tem origem nos chamados Acordos MEC-USAID (Ministério da Educação e Cultura do Brasil - Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento internacional), ponto-chave da política de desnacionalização do ensino brasileiro. Através desses acordos técnicos, americanos e brasileiros (sob a coordenação do teórico da filosofia educacional americana para a América Latina, Rudolph Atcon) procurariam propor a modernização do ensino superior no Brasil.
Neste contexto é gestada a lei 5.540/68 que buscou fazer a reforma universitária de interesse da elite dominante e que se adequava à realidade do momento e às concepções dos militares.
3. CONSIDERAÇÕES CRÍTICAS
No final de 1967, o governo brasileiro criou uma comissão chefiada pelo coronel do Exército Meira Mattos, para fazer um levantamento da crise e intervir nas universidades. O que essa comissão propôs se encaixava perfeitamente no espírito dos acordos MEC-USAID. O mesmo aconteceu com as propostas do Grupo de Trabalho da Reforma Universitária, materializadas na Lei no 5.540, aprovada em 28 de novembro de 1968.
A modernização da universidade ocorre, assim, menos por pressão estudantil e mais pela descoberta dos militares de que a inovação poderia ser manipulada sem ameaças à estrutura de poder vigente.
Neste período a educação passa a ser encarada oficialmente como um fenômeno isolado do resto do contexto social e político, identificando-se a reforma universitária com remodelações ténico-administrativas. Bastaria uma “boa direção” para se ter um “bom rendimento”. Racionalização, eficiência e produtividade tornam-se valores absolutos, sobrepondo-se, pretensamente, a qualquer opção política.
Em termos organizacionais a lei 5.540/68 propunha que o ensino superior fosse ministrado preferencialmente em universidades, nas quais a menor estrutura seria o departamento, congregando disciplinas afins. Propõe também a não duplicação de serviços, visando maior economia e melhor produtividade.
Além do reitor, as universidades deveriam ser administradas por conselhos compostos de membros das comunidades acadêmicas, representantes do Ministério da Educação e representantes das comunidades locais, que na prática funcionariam como emissários do poder.
As unidades universitárias deveriam promover cursos de graduação, pós-graduação, aperfeiçoamento e especialização, bem como a pesquisa. Extingue-se a cátedra, criando-se a carreira docente. Isto, entretanto, gera a corrida pela titulação, que se traduz numa produção acadêmica desvinculada das necessidades sociais — ascender na carreira acaba sendo uma das poucas alternativas para obter melhorias salariais.
Unifica-se o vestibular, dando origem à “geração cruzinha”, aquelas legiões de candidatos mais preocupados em aprender as “mancadas” dos exames do que em se preparar para serem profissionais competentes. Criam-se os currículos mínimos, com prioridade do cumprimento de determinado número de horas-aula e não do conteúdo a ser transmitido aos alunos, introduz-se a matricula por disciplina, desfazendo-se e desarticulando-se, assim, os grupos de estudantes que, antigamente, caminhavam juntos na vida acadêmica. Elimina-se, desta forma, uma das vigas mestras da organização estudantil.
De acordo com Pereira (1986, p. 117-118) a reforma universitária, implantada em 1968 foi de cima para baixo e ocasionou
(...) algumas mudanças na estrutura das instituições, sendo que os resultados, na prática, ao longo dos seus quinze anos de implantação, provocaram sérias distorções, das quais a mais acentuada tem sido a queda da qualidade do ensino. Apesar de algumas mudanças na sua estrutura, a universidade pós-moderna é ainda a tradicional. Ela apenas se apropriou de certos meios técnicos e burocráticos mas a sua função é ainda impregnada do mesmo espírito da educação superior do passado. Porém, com a nítida diferença que a universidade, após vinte anos de regime autoritário, é desprovida do espírito critico, é esvaziada do saber transformador, é privada da liberdade acadêmica, e Todos esses aspectos considerados essenciais e imprescindíveis para o fortalecimento do potencial da instituição foram renegados pelo regime de força autoritária.
Sem dúvida, sob alguns aspectos, como o da diversificação dos cursos, a situação melhorou:
(...) em 1960 havia 1.115 faculdades no Pais; em 1980 cerca de 4.394 estabelecimentos de ensino superior. Mas um exame mais cuidadoso demonstra como se chegou a isso: em parte através da implantação da “indústria do saber”, com o surgimento de cursos de fim de semana e do inchaço da rede particular que surgiu para atuar principalmente na área de Ciências Humanas. (RETRATO DO BRASIL, Vol II, p. 438-440).
Em outras palavras, teve início uma “indústria” universitária, agraciada com um grande lucro, pois necessita de uma infra-estrutura que se restringe quase sempre a salas de aula superlotadas de sonolentos alunos; lousa; giz e um professor hora-aula dedicado, mas mal remunerado — sem as mínimas condições de exercer com dignidade seu trabalho.
Para se ter uma idéia da evolução do ensino privado, basta dizer que em 1963 o Brasil contava com 28.944 docentes e em 1980 eram 116.827, dos quais mais de dois terços trabalhavam em estabelecimentos particulares. Do ponto de vista mais geral, o ensino particular. cresceu cinco vezes mais que o ensino público de 1963 para 1980. (RETRATO DO BRASIL, Vol II, p. 438-440).
Além disso, durante o Regime Militar, a imagem do professor, competente na definição dos objetivos, absolutamente mensuráveis, descolara-se da imagem do educador, comprometido ética e politicamente. O conceito de especialista em educação inspirou as reformas dos estudos pedagógicos dos anos 60 e 70. As Leis 5540/68 e 5692/71, bem como os cursos de formação de professores, pagaram um forte tributo a esse reducionismo teórico, pois o especialista é um profissional do particular, enquanto o educador é um profissional da totalidade, da dialética, da “cumplicidade”, dos valores de vida, é o “mistagogo”, que inicia os jovens ao mistério das coisas e dos homens.
Resumidamente, os militares, por meio da lei 5540/68, promoveram uma reforma no ensino superior brasileiro, extinguiram a cátedra - suprimindo o que se considerava ser o bastião do pensamento e do comportamento conservador na universidade - , introduziram o regime de tempo integral e dedicação exclusiva aos professores, criaram a estrutura departamental, dividiram o curso de graduação em duas partes, ciclo básico e ciclo profissional, criaram o sistema de créditos por disciplinas instituíram a periodicidade semestral e o vestibular eliminatório. Implementaram também a indissociabiidade entre ensino, pesquisa e extensão. No regime anterior, essa idéia não estava claramente presente, mas havia referência à pesquisa e ao ensino como tarefas do professor catedrático, para o que era agraciado com contrato de dedicação integral.
No caudal dos atos de exceção da ditadura militar, a universidade brasileira foi obrigada a testemunhar a repressão, a perseguição policial, a expulsão, o exílio, as aposentadorias compulsórias, a tortura, a morte de muitos de seus melhores pensadores. Entretanto, se por um lado a reforma de 1968 significou uma violência à inteligência, por outro trouxe elementos de “renovação”, sobretudo no que diz respeito à pós-graduação, fortalecida em algumas áreas, instituída em outras.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A lei 5540/68 afetou e modificou toda a estrutura universitária brasileira e, ao mesmo tempo que buscou acabar com o conservadorismo e o didatismo enciclopédico que a caracterizava, restringiu a sua liberdade de pensamento e administração.
Além disso, o Estado passou a perseguir e a exilar os pensadores mais influentes e atuantes que compunham a comunidade universitária. Preservando apenas aqueles que se moldavam e defendiam, ou não se manifestavam, contra o regime em vigor.
Essa lei firmou como preponderante, no âmbito universitário, o inconformismo verbal, dissimulado e dito nas entrelinhas, aliado ao conformismo prático. Para o regime a universidade não era local de discussão e manifestação política e sim local de pesquisa e estudo. Com isso amputou-se uma área importante da formação do aluno e uma geração inteira aprendeu apenas a aceitar o pensamento vigente, a nunca contestar a autoridade dominante.
Enfim, a reforma instituída pela lei 5540/68 foi importante para a evolução educacional, principalmente no âmbito da pesquisa científica (pós-graduação), porém o preço pago por essas inovações foi muito alto, uma vez que custou a liberdade de pensamento e manifestação política de uma geração inteira. Contudo, o silêncio imposto obrigou o desenvolvimento de uma linguagem de contestação camuflada, refletindo-se na cultura (teatro, música, literatura, etc) e direcionando a criatividade intelectual por caminhos inusitados.
5. REFERÊNCIAS
PEREIRA, Maria Arlethe. Os vinte anos de regime autoritário e sua influência na universidade brasileira. 1986.
RETRATO DO BRASIL - da Monarquia ao Estado Novo. Universidade sufocada. São Paulo: ed. Política, 1984, V. II, p.438-440.
6. BIBLIOGRAFIA CONSULTADA
CALDEIRA, Jorge. História do Brasil. Rio de Janeiro: Companhia das Letras. 1999.
CARVALHO, Jane M. Cardoso (Coord.). Coletânea da Legislação de Ensino de 1969 a 1975. Curitiba: Fundepar.
NISKIER, Arnaldo. LDB: a nova lei da educação: tudo sobre a lei de diretrizes e bases da educação nacional: uma visão crítica. Rio de Janeiro: 1996.
SCHWARTZMAN, Simon. Pela eliminação da estrutura corporativa da educação superior brasileira. Boletim Informativo Bibliográfico das Ciências Sociais. Rio de Janeiro: 1985.
Um comentário:
Prezado:
Apenas um reparo: as declarações ao Jornal do Campus foram feitas em meu nome pessoal, e não da Transparência Brasil. Quanto ao restante de seu escrito, não vale a pena comentar.
Atenciosamente,
Claudio Weber Abramo
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