A doxa, a consciência, a internet e os direitos individuais
É isso mesmo... vou fundamentar um modelo de Democracia Direta para a atualidade nas idéias de Hannah Arendt. Nós temos tecnologia, temos disposição, só falta o modelo que eu estou construindo...
Reescrevendo a definição citada na série Arquivo X, digo que, precisamos buscar as conectividades da vida e conectar o não conectado. Precisamos fazer justaposições e buscar relações e padrões nas coisas e na natureza. Mais do que isto, precisamos buscar avenidas imprevistas de pensamentos e virar novas esquinas. Precisamos fazer tudo isto para promover a evolução da humanidade e alcançar novos patamares de desenvolvimento e conhecimento.
Neste texto busco ligar o presente ao passado e mostrar que podemos reproduzir hoje, com novos parâmetros e métodos, mas preservando a mesma essência, a vida na polis grega. Para isto vou relacionar a doxa com a consciência, a esfera pública com a internet. Para estabelecer estas conexões e relações vou utilizar textos que já escrevi sobre a questão, assim como fazer uso dos especialistas no assunto, incluindo Hannah Arendt, cujas idéias são o teorema fundamental na construção destas conectividades.
Inicialmente vamos refletir sobre alguns pontos da obra "Política e Liberdade em Hannah Arendt", escrito por Francisco Xarão (Ed. UniJuí - RS - 2000). Estes pontos explicam bem a visão ateniense da política. E, a partir dessa explicação, posso construir as relações propostas, trazendo a construção ateniense para a atualidade.
De acordo com o livro citado:
"Persuadir não era, para os atenienses, tão somente sujeitar por palavras a opinião de outros à sua própria opinião. Persuasão era o meio pelo qual os atenienses trocavam as suas 'doxai'. Para Sócrates, como para seus concidadãos, a 'doxa' era a formulação em fala daquilo que 'dokei moi', daquilo que me parece. A 'doxa' não era algo que seria provável ou semelhante em referência a algum padrão definido, mas sim a forma pela qual o mundo se revela aos olhos de cada um.
O pressuposto dos habitantes da 'polis' era de que um mesmo mundo se abre a todos de maneira diferente pelo fato de que cada um ocupa nele um lugar distinto. Conseqüentemente, apesar das variedades de opinião, pela multiplicidade de posição que os homens ocupam em um mundo comum, era natural para os atenienses que todos os que possuíssem 'doxai' fossem considerados humanos." (Xarão, pag.58).
Antes de analisar esta instituição grega, vou buscar, na Teoria da Consciência e Liberdade (Texto aqui), a definição que utilizo para a consciência:
"A Consciência é um sistema analítico que avalia informações e conhecimentos e emite, após esta análise, uma sentença, uma decisão. A consciência pode ser comparada a um juízo ou uma vara judicial. O juízo ou vara judicial através do processo judicial analisa provas, fatos, etc. A consciência, através de processos mentais, analisa informações e conhecimentos. Os processos mentais são conhecidos por pensamentos. Quando pensamos estamos analisando informações e conhecimentos.
Portanto, a consciência, através de processos mentais (pensamentos), analisa informações e conhecimentos emitindo, como resultado dessa análise, uma sentença que poderá formar uma nova informação ou um novo conhecimento, ou então, a decisão é uma ordem que deve ser executada.
A ordem da consciência é a vontade. E esta ordem, decisão (uma sentença) interna, própria do indivíduo, é gerada por conhecimentos e informações que o indivíduo recebeu ao longo do tempo e de sua vida, assim como dos valores que aprendeu, dos costumes de onde vive, etc."
A 'doxa' tem ligação direta com a consciência. A 'doxa' era a formulação em fala daquilo que 'dokei moi', daquilo que me parece. A formulação em fala daquilo que me parece é a formulação em fala da sentença emitida pela minha consciência. A 'doxa', portanto, é a própria expressão da consciência da pessoa, pois a formulação em palavras daquilo que me parece é a formulação em palavras da sentença emitida pela consciência humana. E a sentença emitida pela consciência do indivíduo é a opinião do indivíduo.
A forma como o mundo se revela aos olhos de cada um é a forma como a consciência humana capta e vê o mundo ao seu redor. Enfim, a consciência humana constrói e profere a 'doxa'.
E a visão dos atenienses que considerava humano somente quem possuía 'doxa' está corretíssima, pois somente os humanos possuem consciência. E somente quem tem consciência pode formular em fala aquilo que 'dokei moi', aquilo que lhe parece.
Continuando no texto de Xarão, sobre Hannah Arendt, lemos que:
"A palavra 'doxa' significa não só opinião, mas também glória e fama. Como tal, relaciona-se com o domínio político que é a esfera pública em que qualquer um pode aparecer e mostrar que é. Nesta possibilidade de aparecer e brilhar dos outros, considerada pelos atenienses como privilégio do domínio público, é que os homens atingem sua plena humanidade. Todos aqueles que viviam somente no domínio privado - a família (mulher e filhos) e os escravos - não eram, por isso, reconhecidos como plenamente humanos." (Xarão, pag.58).
Portanto, para os gregos somente alcançava a plena humanidade quem expressava plenamente a sua consciência no espaço público, quem refletia e formulava em palavras o 'dokei moi', aquilo que lhe parecia. Quem revelava aos outros a sua consciência, a sua opinião.
A segunda relação que estabeleceremos e da "vida na 'polis' com a internet. A 'vida na 'polis' constituía-se no aparecer, com atos e palavras, em um espaço público projetado para isso, onde os cidadãos podiam trocar as suas 'doxai'."(pag.86)
"A 'polis' era o lugar do agir e falar em conjunto, o espaço de aparição, no mais amplo sentido da palavra, ou seja, o espaço no qual eu apareço para os outros assim como os outros aparecem para mim, onde os homens existem não meramente como coisas vivas ou inanimadas, mas fazem sua aparição explicitamente."(Xarão, pag.86).
Portanto, a 'vida na polis' é o lugar onde o indivíduo aparece para revelar a sua consciência, para mostrar a sentença que a sua consciência proferiu em determinado caso, ou seja, a sua opinião. A 'vida na polis' é o espaço de revelação da consciência individual.
Como é que eu relaciono isso com a atualidade. A internet nada mais é do que a polis grega, ou seja, um espaço onde nós aparecemos para defender as nossas idéias, as nossas visões, etc. Um espaço onde, através dos nossos sites, blogs, orkut, chat, vídeos, etc formulamos aquilo que 'dokei moi', aquilo que nos parece. A internet é um espaço, existem muitos outros, de revelação da nossa consciência, de revelação da nossa opinião.
E assim, como a polis grega, a internet nos dá a possibilidade de falar e sermos ouvidos, de falar e sermos rebatidos, de falar e sermos questionados. Não há indiferença na internet. Há sempre interação, pois todo texto é lido. Podem até não respondê-lo ou não comentá-lo, mas o texto é lido. E aquela leitura irá aparecer em algum outro lugar, na fala de alguém...
Mas o mais interessante é que a internet está aberta para todos. É uma 'polis' universal. Não faz distinção, nem vê diferenças. Todos tem a mesma possibilidade de trocar as suas 'doxai', expressar o seu 'dokei moi', aquilo que lhe parece... É isso que fazemos aqui com os nossos textos, com as nossas idéias, etc.
A 'doxa' se transforma em um problema para os filósofos gregos quando Sócrates é julgado e condenado, na Ágora, pelos diversos 'dokei moi' (me parece) dos atenienses.
É importante lembrar que a Ágora era a praça pública onde os antigos gregos atenienses reuniam-se para debater e deliberar acerca de suas questões políticas. Era ali que tomava corpo a ecclèsia, a assembléia dos cidadãos para decidirem sobre os destinos de sua polis, da sua cidade.
"Platão teria concluído desse fato que o filósofo não está seguro na 'polis' Para confirmar essa conclusão basta lembrar a opinião que os gregos tinham dos 'Sophoi' os sábios, como pessoas que não sabiam o que era bom para eles (um bom exemplo disso é o fato pitoresco de Tales ter caído em um poço sob seus pés enquanto olhava para o céu). Ora, os 'Sophoi' eram os que estavam mais interessados com os assuntos externos à vida diária (com as questões eternas e imutáveis) e, por isso, não possuíam aquele tipo de sabedoria prática, que Aristóteles chamou de 'Phronésis'.
O próprio Aristóteles concordava com essa opinião pública: tanto Tales quanto Anaxágoras eram sábios, mas não 'Phronimos'(homens de compreensão). A preocupação dos 'Sophoi' era com a verdade das coisa, com aquilo que é eterno e, portanto, não-humano. Conseqüentemente, eram vistos como inúteis para a 'polis'. Platão não discordava dessa opinião, mas recusava aceitar que isso tornasse os filósofos inúteis para a política". (p.59)
"A condenação de Sócrates fez com que Platão empreendesse uma busca de padrões absolutos, sem os quais o domínio político permanece sempre relativo e instável. Tais padrões tornaram-se, daí em diante, o impulso primordial de sua filosofia política, influenciando de forma decisiva até mesmo a doutrina puramente filosófica das idéias. Relacionada com a busca desses padrões está a desconfiança em relação à persuasão e, intimamente ligada a essa desconfiança, a condenação da 'doxa'. O conceito de verdade elaborado por Platão está em proporção inversa à noção de 'doxa', tão importante na Grécia. A distância entre opinião e verdade tornou-se então o abismo que viria a separar os filósofos dos homens comuns". (p. 60)
Se a 'doxa' é a própria expressão da consciência da pessoa, pois a formulação em palavras daquilo que me parece é a formulação em palavras da sentença emitida pela consciência humana, como foi possível a condenação de Sócrates ? Como explicamos isto a partir da Teoria da Consciência e Liberdade ?
O primeiro equívoco dos gregos foi confundir opinião (verdade subjetiva) com verdade (verdade objetiva), foi confundir a sentença emitida pela consciência, a 'dokei moi', com a verdade oriunda objetivamente das coisas e dos fatos.
A ordem emitida pela consciência do indivíduo é a vontade. E esta ordem, decisão (uma sentença) interna, própria do indivíduo, é gerada por conhecimentos e informações que ele recebeu ao longo do tempo e de sua vida, assim como dos valores que aprendeu, dos costumes de onde vive, etc. Por isso, esta ordem (sentença), a vontade, é uma verdade subjetiva.
A verdade objetiva advém das coisas e dos fatos independentemente da interferência humana, sendo comum a todos os seres humanos. São os dados 'in natura'. Por exemplo, o sol nasce. A planta cresce. O tempo passa. A pedra cai, etc.
A razão e a ciência são especializadas na produção de verdades objetivas. Verdades objetivas que também são captadas pela consciência humana e que, muitas vezes, não são tão objetivas, mas eram verdades subjetivas. Por exemplo, 'o sol gira ao redor da terra' já foi uma verdade objetiva. Porém um dia, Copérnico mostrou que esta verdade, tida como objetiva, era, na verdade, uma verdade subjetiva do Ptolomeu. A verdade objetiva era 'a terra gira ao redor do sol'.
A Teoria da Consciência e Liberdade define a Liberdade como poder do indivíduo de agir de acordo com a sua própria consciência, ou seja, agir de acordo com a ordem emanada da consciência. Esta ordem é formada pela consciência por meio de processos mentais (pensamentos) que analisam informações e conhecimentos.
Portanto, a Liberdade humana deriva de uma verdade subjetiva. Contudo, sendo a Liberdade um poder, e o poder é uma coisa objetiva, é uma verdade objetiva. Portanto, a Liberdade humana é uma verdade objetiva (um poder) que executa (põe em prática ou movimenta) uma verdade subjetiva (a sentença da consciência).
A Teoria da Consciência e Liberdade explica, ainda, o motivo pelo qual as pessoas possuem liberdades parecidas ou porque a percepção de liberdade entre os indivíduos é parecida. A resposta é: porque a nossa consciência se desenvolve sobre a mesma base cognitiva. Recebemos as mesmas informações, os mesmos conhecimentos, as mesmas regras, os mesmo costumes, valores, crenças, etc.
Logo, temos os mesmos conjuntos de dados que serão avaliados pelos processos mentais (pensamentos). Contudo, como existem pequenas variações nas cognições e nos pesos dados às informações e conhecimentos, temos liberdades individuais parecidas, mas jamais semelhantes. Cada pessoa tem a sua própria consciência e constrói a sua própria liberdade. Porém, faz isto dentro do mesmo sistema cognitivo social. Portanto, não existem grandes discrepâncias.
Disso decorre que onde há uma diferença acentuada na consciência, devido a diferenças no sistema cognitivo, valores e crenças há uma mudança acentuada na percepção da liberdade. É o caso da liberdade do oriente x a liberdade do ocidente. A liberdade dos cristãos x a liberdade dos muçulmanos x a liberdade dos budista, etc.
Portanto, tudo que incide e afeta a liberdade, incide e afeta a 'doxa'. Mais do que isto, a 'doxa', compreendida como expressão da consciência da pessoa, antecede a liberdade. É uma verdade subjetiva. É uma verdade que varia de pessoa para pessoa e depende das informações e conhecimentos que a pessoa possui e daquilo que ela aprendeu ao longo da vida, suas crenças, seus valores e seus costumes.
Um exemplo evidente disso é um referendo hipotético que podemos fazer sobre um mesmo caso. Um homossexual é levado à Àgora para julgamento. A primeira Àgora é no Irã. A segunda Àgora é no Brasil. E o referendo deve dizer se ele será condenado a morte ou não. As pessoas devem decidir livremente de acordo com a própria consciência. Muito provavelmente, no Irã ele será condenado a morte e, no Brasil, é absolvido e enviado para participar do Big Brother.
O que ocorreu com a 'doxa' ? Não há verdade na 'doxa' ? A resposta é: a verdade da 'doxa' é a verdade da consciência. A verdade da consciência é uma verdade subjetiva. Não é uma verdade objetiva, uma verdade matemática. Por isso a 'doxa', assim como a vontade da maioria, não é o instrumento adequado para emitir decisões onde se exige a existência de uma verdade objetiva.
Portanto, Sócrates foi condenado pela confusão entre a opinião e a verdade. Confusão entre a vontade da maioria e a verdade objetiva. A vontade da maioria é apenas a generalização de uma verdade subjetiva. Isto não a torna uma verdade objetiva. Em tese, a sentença de julgamento de um homem deve se aproximar o máximo possível de uma verdade objetiva. E, para isto, deve-se utilizar técnicas e métodos científicos e racionais. Contudo, se Sócrates tivesse sido julgado por um só Juiz ateniense, ele teria se salvado ?
A razão e a ciência produzem verdades objetivas, informações e conhecimentos, que são matérias-primas na construção da 'doxa'. A minha visão de mundo é construída a partir daquilo que eu sei sobre o mundo. Aquilo que me parece, a sentença da minha consciência, é formada pela análise das informações e dos conhecimentos que internalizei ao longo da minha vida. Informações e conhecimentos que vêm das mais diversas fontes: ciência, razão, religião, etc.
Portanto, os excessos e os desvios da 'doxa' podem ser corrigidos pela ciência e pela razão, com o estabelecimento de verdades objetivas, válidas para todos. Estas verdades objetivas ou convencionadas formam, dentro da consciência individual, os subsistemas. Por exemplo, a consciência coletiva que reúne regras e normas ligadas à estrutura familiar, ao aprendizado familiar, à educação, aos valores individuais, à moral, à ética, etc. É a consciência que se desenvolve nos pequenos grupos, na família, entre os amigos ou em numa pequena comunidade.
Quando a consciência, antes de emitir uma 'doxa', se depara com as normas e regras da consciência coletiva, ela pára e acata a decisão que é aceita e convencionada - por aquele grupo coletivo. Ela acata aquilo que está estabelecido. Logo, a 'doxa' se apresenta formatada pela convenção.
A consciência social é uma generalização, uma ampliação, da consciência coletiva. Enquanto a consciência coletiva estrutura e mantém um grupo pequeno e próximo ao indivíduo, a consciência social estrutura e mantém um grupo amplo, uma coletividade, uma sociedade. Na consciência coletiva os membros do grupo são conhecidos, pois estão próximos. Nesta consciência social os membros do grupo são, em sua maioria, desconhecidos um dos outros, porém estão sujeitos às mesmas normas e regras. Um exemplo disso é o ordenamento jurídico - costumeiro ou o Direito Positivo.
Quando a consciência, antes de emitir uma 'doxa', se depara com as normas e regras da consciência social, ela pára e acata a decisão que foi legitimada pelo grupo social e vale para todos. Por exemplo, uma lei ou um costume da sociedade. Logo, mais uma vez, a 'doxa' se apresenta formatada pela convenção.
Outro ponto importante é que a 'doxa', verdade subjetiva, caminha para a verdade objetiva, conforme o número daqueles que a detém. O termo 'caminhar' significa que se uma grande maioria vê a mesma coisa, há uma tendência desta coisa ser uma verdade objetiva. Porém, isto é uma tendência que a ciência e a razão irão testar para ver se ela se confirma ou não. A maioria pode estar redondamente enganada. Isto ocorre, por exemplo, quando há uma informação errada na base cognitiva, que leva a um processo analítico errado na consciência, logo, a uma 'doxa' errada. Ilustrativamente, uma gráfica imprime um livro com informações erradas. O livro é usado para uma prova que faz uma pergunta sobre aquela informação errada. O que acontece ? Todos que estudaram por aquele livro irão responder errado a questão, irão fazer comentários errados, etc.
Outro elemento inibidor dos excessos e desvios da 'doxa' é a instituição do Direito Natural. Mas antes disso, é preciso dizer que o Direito é sempre uma condicionante da consciência. Logo, uma esfera inibidora da liberdade. Isso porque a consciência do homem pode contrariar o Direito, pode contrariar as normas vigentes. Logo, o Direito limita e inibe a esfera de consciência. Portanto, inibe e limita a liberdade. Por isso, é válida a frase que diz: "Sempre que nasce um direito, morre uma liberdade". Morre uma liberdade porque uma consciência foi condicionada e os indivíduos não terão mais uma consciência livre naquele assunto. Terão que agir, não de acordo com a própria consciência, mas de acordo com a prescrição da norma que foi criada. A consciência tem que seguir a norma. A liberdade foi condicionada e limitada.
O Direito Natural é um conjunto de normas localizadas fora dos subsistemas, das demais consciências. São normas de rotina da consciência individual que inicializam a própria consciência e a mantém em funcionamento. A melhor ilustração é pensar no Direito Natural como um sistema operacional. Um sistema fundamental que permite o funcionamento de todos os subsistemas. Sem sistema operacional o computador não funciona. Sem Direito Natural, a consciência não tem estabilidade e nem proteção. Logo, o próprio indivíduo é transformado em coisa, perde a sua identidade e a sua individualidade, pois o Direito Natural é a garantia e a proteção da consciência, da identidade e da individualidade.
Portanto, diante de uma norma de Direito Natural a 'doxa' também fica paralisada ou vinculada. Não pode se sobrepor porque são normas essenciais que estão presentes em todas as consciências individuais. Normas que se referem e protegem a consciência e o indivíduo como um todo. E sem estas normas a consciência fica comprometida em seu funcionamento regular. Inclusive a norma fundamental que estabelece: "agir de acordo com a própria consciência" é uma norma do Direito Natural que está na consciência individual de toda pessoa, assim como as normas que protegem a vida humana.
Pulando do Direito Natural para os Direitos Individuais, caímos em uma sinuca de bico entre Direitos Individuais e Direitos Coletivos. Entre a Liberdade Individual, gerada pela Consciência Individual e a Liberdade Política gerada pela Consciência Política ou a Liberdade Coletiva gerada pela Consciência Coletiva. Pode as regras do subsistema sobrepor-se às regras de todo o sistema ?
Os Direitos Coletivos não podem se sobrepor ao Direito Natural, uma vez que esta sobreposição destrói a consciência humana e o próprio homem. Destruindo as partes do sistema, destrói-se o sistema. Portanto, o Direito Natural está acima dos Direitos Coletivos e de todas as demais normas e regras oriundas da própria consciência individual ou das demais consciências.
Os demais direitos individuais, que não são Direitos Naturais, por exemplo, o direito de propriedade, etc; estão sujeitos à gangorra democrática. Isto significa que regras convencionadas pela maioria podem se sobrepor à vontade pessoal, à consciência individual. Nestes casos deve-se buscar o equilíbrio entre a vontade da maioria e a vontade individual, a liberdade da maioria e a liberdade individual, o direito da maioria e o direito individual. Isto é a tal gangorra democrática.
A sociedade moderna, fruto do direito e da democracia, gravita em torno dos limites máximos da liberdade e dos direitos do indivíduo e se desenvolve em meio ao conflito entre os interesses da maioria, garantidos pela liberdade política, e os direitos individuais, ou seja, há duas esferas de interesses e de proteção, de um lado os interesses e a vontade coletiva e de outro o indivíduo como ser humano.
Olhando superficialmente, essa relação parece contraditória, uma vez que a liberdade política, concretizada na democracia e no governo da maioria, é inibida pela esfera dos direitos individuais; ao mesmo tempo, os direitos individuais são instituídos, limitados e garantidos pelo poder da maioria. Essa relação, algumas vezes de conflito, outras de complementação, é o que eu denomino de gangorra democrática, onde de um lado está a liberdade política, os direitos e interesses da coletividade, e do outro, as liberdades e os direitos individuais.
Dessa constatação deriva outras duas características das democracias modernas: o conflito e o debate público. Não existe democracia sem convivência com conflitos, seja entre indivíduos, seja entre o indivíduo e a coletividade; e sua solução através do compromisso e da argumentação, ou de uma combinação de ambos. Portanto, a sociedade democrática atual busca, incessantemente, o ponto de equilíbrio entre o poder governante da maioria e os direitos individuais, ou seja, busca equilibrar a gangorra no ponto médio.
Esse conflito entre liberdades e direitos não é coisa da atualidade, uma vez que foi vislumbrada nas considerações de Benjamin Constant que, em seu célebre discurso intitulado “De la Liberté des anciens comparée à celle des modernes”, comparou a liberdade dos antigos com a liberdade dos modernos.
A liberdade dos antigos, relata Constant, residia na participação dos cidadãos nas decisões públicas, ou seja,
"(…) consistia no exercício coletivo e direto de várias partes da soberania. Consistia em deliberar em praça pública sobre a guerra e sobre a paz, em concluir com estrangeiros tratados e alianças, em votar leis, em pronunciar julgamentos e examinar as contas, os atos e gestões dos magistrados, em fazer comparecer todo o povo, colocá-los sob acusação, condená-los ou absolvê-los; mas ao mesmo tempo que era isso que os antigos chamavam de liberdade, eles admitiam como compatível com essa liberdade coletiva a completa sujeição do indivíduo à autoridade do conjunto."
Percebe-se, portanto, que não existia entre os antigos uma esfera de liberdade do indivíduo protegida por direitos individuais. O poder exercido pelo conjunto dos cidadãos ,na Assembléia, era supremo e não respeitava qualquer limite.
Assim, o objetivo da organização política era assegurar a intervenção dos cidadãos nas decisões, garantir o seu poder, não havendo qualquer obstáculo ou limitação para essas decisões. Logo, havia a supremacia absoluta do coletivo, da vontade da maioria, sobre o individual. Em outras palavras, havia “a submissão completa do indivíduo à autoridade do todo”.
"Não encontrareis entre eles quase nenhum dos privilégios que vemos fazer parte da liberdade entre os modernos. Todas as ações privadas estão sujeitas a severa vigilância. Nada é concedido à independência individual, nem mesmo no que se refere à religião. A faculdade de escolher seu culto, faculdade que consideramos comum e nossos mais preciosos direitos, teria parecido um crime e um sacrilégio para os antigos. Nas coisas que nos parecem mais insignificantes, a autoridade do corpo social interpunha-se e restringia a vontade dos indivíduos." (CONSTANT, 1985).
A condenação do filósofo Sócrates, citada anteriormente, era um disso. Uma condenação que seria completamente impossível nas sociedades democráticas atuais, pois as decisões da maioria não adentram à esfera individual, ou seja, são limitadas e não autorizadas a violar liberdades e direitos individuais, principalmente os Direitos Naturais, como a vida, etc.
Portanto, de acordo com Constant, entre os antigos, o indivíduo, quase sempre soberano nas questões públicas, é escravo em todos seus assuntos privados. Como cidadão, ele decide sobre a paz e a guerra; como particular, permanece limitado, observado, reprimido em todos seus movimentos; como porção do corpo coletivo, ele interroga, destitui, condena, despoja, exila, atinge mortalmente seus magistrados ou seus superiores; como sujeito ao corpo coletivo, ele pode, por sua vez, ser privado de sua posição, despojado de suas honrarias, banido, condenado, pela vontade arbitrária do todo ao qual pertence.
Entre os modernos, assinala Constant, ao contrário, o indivíduo, independente na vida privada, mesmo nos Estados mais livres, só é soberano em aparência. Sua soberania é restrita, quase sempre interrompida; e, se, em épocas determinadas, mas raras, durante as quais ainda é cercado de precauções e impedimentos, ele exerce essa soberania, é sempre para abdicar a ela.
Em outras palavras, a plenitude da liberdade política dos antigos foi limitada e impedida de acessar o plano das liberdades individuais. E, para que não existam dúvidas sobre essas limitações e impedimentos especificou-se e firmou-se, em constituições formais e tratados internacionais, as liberdades e os direitos individuais. Assim, o governo democrático é da maioria, mas a maioria não pode tudo. Tem que respeitar os direitos individuais e os direitos das minorias.
Também foi essa limitação, imposta pelos direitos individuais, que invalidou o argumento de Platão de que a democracia caminhava, devido ao excesso de liberdade, para a auto-destruição.
A democracia, segundo Platão, era resultado da transformação da forma oligárquica de governo e a sua principal característica era a liberdade. Assim, os homens que viviam sob esse regime eram livres e prevalecia a liberdade de expressão na cidade. Contudo, ele não considerava a liberdade uma virtude da democracia, pois a identificava com licença, com a possibilidade de cada pessoa fazer o que quisesse. Nesse sentido, para apreciar todos os prazeres da vida o homem democrata necessitava de ampla liberdade e a aproveitava de modo desregrado.
Na visão de Platão a liberdade que caracterizava a democracia não gerava apenas homens democratas de modo desregrado, mas deixava espaço também para que cada um organizasse a sua vida como lhe aprouvesse, fosse de um modo aristocrático, oligárquico, democrático ou tirânico. Assim, o excesso de liberdade, que cada um tinha de organizar a sua própria vida da maneira que melhor lhe aprouvesse, terminaria em opressão para todos. E, do mesmo modo que nas outras formas de governo, a democracia seria dissolvida em função do excesso de sua principal característica, isto é, seria dissolvida pelo excesso de liberdade e pela negligência das pessoas. Transformando-se, então, em tirania. Para Platão, muita liberdade transformava-se em nada, a não ser muita escravidão para os homens privados e para a cidade.
Segundo Platão, a democracia era a forma de governo em que os pobres governavam. Como o número de pobres era muito grande, então, a democracia era o governo de muitos e tinha como principal característica a liberdade. A prevalência desta aliada ao governo de muitos conduziam a um regime em que as leis não eram valorizadas, já que constituíam obstáculos para o exercício da liberdade. Então, o excesso de liberdade fazia com que a democracia se degenerasse em uma tirania, que era a pior de todas as formas de governo.
O encadeamento lógico de Platão foi quebrado pelo advento dos direitos individuais que, ao mesmo tempo em que limitaram o poder da maioria, oriundo da liberdade política, sobre o indivíduo; também impuseram uma barreira ao excesso de liberdade individual. O Direito limitou a consciência, logo limitou a liberdade. Esta limitação, imposta tanto à liberdade do ente coletivo, quanto ao indivíduo, impediu o surgimento das conseqüências do excesso de liberdade em uma sociedade democrática.
Contudo, se escapamos da maldição de Platão por uma porta, nos deparamos com outra maldição: a corrupção das instituições públicas controlada por uma minoria de servidores públicos e de políticos profissionais, especializados em enganar a maioria nas eleições e camuflar os verdadeiros interesses que defendem: os interesses dos grupos econômicos dominantes. Resumindo, a maldição é a mesma, ou seja, a democracia se degenera em uma tirania.
Enfim, na atualidade, a liberdade política e os direitos individuais formam uma gangorra democrática, onde cada um dos lados da gangorra é constituído por uma dessas instituições. Assim, o aumento de um dos lados é acompanhado da respectiva diminuição do outro, ou seja, aumentando o poder da maioria ocorre uma redução da liberdade individual e vice-versa. Contudo, assim como a gangorra, o aumento ou a diminuição de cada um dos lados possui um teto e um piso, ou seja, o acréscimo ou decréscimo de poder, seja da maioria ou individual, ocorre dentro de uma faixa de tolerância, porém nunca fora dela. Com isso protege-se a coletividade do excesso de liberdades e direitos individuais, assim como protege-se o indivíduo do excesso de poder da maioria.
O teto e o piso da gangorra democrática são dados pelas constituições e pelos tratados internacionais de direitos humanos que determinam até onde vai o poder da maioria e quais são os direitos individuais invioláveis, ou seja, os Direitos Naturais positivados.
Portanto, a 'doxa' é uma das formas expressão da consciência individual. Era a formulação em fala daquilo que 'dokei moi', daquilo que me parece. A formulação em fala daquilo que me parece é a formulação em fala da sentença emitida pela minha consciência. Já a 'vida na polis' era o lugar onde o indivíduo aparecia para revelar a sua consciência, para mostrar a sentença que a sua consciência proferiu em determinado caso, ou seja, a sua opinião. A 'vida na polis' era o espaço de revelação da consciência individual. E a internet é um espaço, existem muitos outros, em que isto acontece, ou seja, em revelamos a nossa consciência, revelamos a nossa opinião.
A condenação de Sócrates, pelos diversos 'dokei moi' dos atenienses foi um equívoco ocasionado pela confusão entre opinião (verdade subjetiva) com verdade (verdade objetiva), foi confundir a sentença emitida pela consciência, a 'dokei moi', com a verdade oriunda objetivamente das coisas e dos fatos. A sentença de julgamento de um homem deve se aproximar o máximo possível de uma verdade objetiva.
Atualmente, a 'doxa' sujeita-se a uma série de correções que visam eliminar seus excessos e desvios. Essas correções derivam da razão e da ciência, de travas colocadas pelos diversos subsistemas da consciência individual, pelo Direito Natural e pelos Direitos Individuais. Correções que bloqueiam o poder da coletividade sobre certos aspectos dos seres humanos. A relação direitos individuais x direitos coletivos formas uma gangorra democrática que busca sempre o equilíbrio.
Além disso, estas travas que eliminam os excessos e os desvios da 'doxa' também invalidaram o argumento de Platão de que o excesso de liberdade destruiria a democracia. Contudo, a democracia atual ainda corre sérios riscos, podendo degenerar-se para uma tirania, devido à corrupção das instituições democráticas.
Neste ponto, eu acabo de estabelecer todas as premissas necessárias para o próximo texto, que é a Democracia Direta na atualidade.
Neste texto busco ligar o presente ao passado e mostrar que podemos reproduzir hoje, com novos parâmetros e métodos, mas preservando a mesma essência, a vida na polis grega. Para isto vou relacionar a doxa com a consciência, a esfera pública com a internet. Para estabelecer estas conexões e relações vou utilizar textos que já escrevi sobre a questão, assim como fazer uso dos especialistas no assunto, incluindo Hannah Arendt, cujas idéias são o teorema fundamental na construção destas conectividades.
Inicialmente vamos refletir sobre alguns pontos da obra "Política e Liberdade em Hannah Arendt", escrito por Francisco Xarão (Ed. UniJuí - RS - 2000). Estes pontos explicam bem a visão ateniense da política. E, a partir dessa explicação, posso construir as relações propostas, trazendo a construção ateniense para a atualidade.
De acordo com o livro citado:
"Persuadir não era, para os atenienses, tão somente sujeitar por palavras a opinião de outros à sua própria opinião. Persuasão era o meio pelo qual os atenienses trocavam as suas 'doxai'. Para Sócrates, como para seus concidadãos, a 'doxa' era a formulação em fala daquilo que 'dokei moi', daquilo que me parece. A 'doxa' não era algo que seria provável ou semelhante em referência a algum padrão definido, mas sim a forma pela qual o mundo se revela aos olhos de cada um.
O pressuposto dos habitantes da 'polis' era de que um mesmo mundo se abre a todos de maneira diferente pelo fato de que cada um ocupa nele um lugar distinto. Conseqüentemente, apesar das variedades de opinião, pela multiplicidade de posição que os homens ocupam em um mundo comum, era natural para os atenienses que todos os que possuíssem 'doxai' fossem considerados humanos." (Xarão, pag.58).
Antes de analisar esta instituição grega, vou buscar, na Teoria da Consciência e Liberdade (Texto aqui), a definição que utilizo para a consciência:
"A Consciência é um sistema analítico que avalia informações e conhecimentos e emite, após esta análise, uma sentença, uma decisão. A consciência pode ser comparada a um juízo ou uma vara judicial. O juízo ou vara judicial através do processo judicial analisa provas, fatos, etc. A consciência, através de processos mentais, analisa informações e conhecimentos. Os processos mentais são conhecidos por pensamentos. Quando pensamos estamos analisando informações e conhecimentos.
Portanto, a consciência, através de processos mentais (pensamentos), analisa informações e conhecimentos emitindo, como resultado dessa análise, uma sentença que poderá formar uma nova informação ou um novo conhecimento, ou então, a decisão é uma ordem que deve ser executada.
A ordem da consciência é a vontade. E esta ordem, decisão (uma sentença) interna, própria do indivíduo, é gerada por conhecimentos e informações que o indivíduo recebeu ao longo do tempo e de sua vida, assim como dos valores que aprendeu, dos costumes de onde vive, etc."
A 'doxa' tem ligação direta com a consciência. A 'doxa' era a formulação em fala daquilo que 'dokei moi', daquilo que me parece. A formulação em fala daquilo que me parece é a formulação em fala da sentença emitida pela minha consciência. A 'doxa', portanto, é a própria expressão da consciência da pessoa, pois a formulação em palavras daquilo que me parece é a formulação em palavras da sentença emitida pela consciência humana. E a sentença emitida pela consciência do indivíduo é a opinião do indivíduo.
A forma como o mundo se revela aos olhos de cada um é a forma como a consciência humana capta e vê o mundo ao seu redor. Enfim, a consciência humana constrói e profere a 'doxa'.
E a visão dos atenienses que considerava humano somente quem possuía 'doxa' está corretíssima, pois somente os humanos possuem consciência. E somente quem tem consciência pode formular em fala aquilo que 'dokei moi', aquilo que lhe parece.
Continuando no texto de Xarão, sobre Hannah Arendt, lemos que:
"A palavra 'doxa' significa não só opinião, mas também glória e fama. Como tal, relaciona-se com o domínio político que é a esfera pública em que qualquer um pode aparecer e mostrar que é. Nesta possibilidade de aparecer e brilhar dos outros, considerada pelos atenienses como privilégio do domínio público, é que os homens atingem sua plena humanidade. Todos aqueles que viviam somente no domínio privado - a família (mulher e filhos) e os escravos - não eram, por isso, reconhecidos como plenamente humanos." (Xarão, pag.58).
Portanto, para os gregos somente alcançava a plena humanidade quem expressava plenamente a sua consciência no espaço público, quem refletia e formulava em palavras o 'dokei moi', aquilo que lhe parecia. Quem revelava aos outros a sua consciência, a sua opinião.
A segunda relação que estabeleceremos e da "vida na 'polis' com a internet. A 'vida na 'polis' constituía-se no aparecer, com atos e palavras, em um espaço público projetado para isso, onde os cidadãos podiam trocar as suas 'doxai'."(pag.86)
"A 'polis' era o lugar do agir e falar em conjunto, o espaço de aparição, no mais amplo sentido da palavra, ou seja, o espaço no qual eu apareço para os outros assim como os outros aparecem para mim, onde os homens existem não meramente como coisas vivas ou inanimadas, mas fazem sua aparição explicitamente."(Xarão, pag.86).
Portanto, a 'vida na polis' é o lugar onde o indivíduo aparece para revelar a sua consciência, para mostrar a sentença que a sua consciência proferiu em determinado caso, ou seja, a sua opinião. A 'vida na polis' é o espaço de revelação da consciência individual.
Como é que eu relaciono isso com a atualidade. A internet nada mais é do que a polis grega, ou seja, um espaço onde nós aparecemos para defender as nossas idéias, as nossas visões, etc. Um espaço onde, através dos nossos sites, blogs, orkut, chat, vídeos, etc formulamos aquilo que 'dokei moi', aquilo que nos parece. A internet é um espaço, existem muitos outros, de revelação da nossa consciência, de revelação da nossa opinião.
E assim, como a polis grega, a internet nos dá a possibilidade de falar e sermos ouvidos, de falar e sermos rebatidos, de falar e sermos questionados. Não há indiferença na internet. Há sempre interação, pois todo texto é lido. Podem até não respondê-lo ou não comentá-lo, mas o texto é lido. E aquela leitura irá aparecer em algum outro lugar, na fala de alguém...
Mas o mais interessante é que a internet está aberta para todos. É uma 'polis' universal. Não faz distinção, nem vê diferenças. Todos tem a mesma possibilidade de trocar as suas 'doxai', expressar o seu 'dokei moi', aquilo que lhe parece... É isso que fazemos aqui com os nossos textos, com as nossas idéias, etc.
A 'doxa' se transforma em um problema para os filósofos gregos quando Sócrates é julgado e condenado, na Ágora, pelos diversos 'dokei moi' (me parece) dos atenienses.
É importante lembrar que a Ágora era a praça pública onde os antigos gregos atenienses reuniam-se para debater e deliberar acerca de suas questões políticas. Era ali que tomava corpo a ecclèsia, a assembléia dos cidadãos para decidirem sobre os destinos de sua polis, da sua cidade.
"Platão teria concluído desse fato que o filósofo não está seguro na 'polis' Para confirmar essa conclusão basta lembrar a opinião que os gregos tinham dos 'Sophoi' os sábios, como pessoas que não sabiam o que era bom para eles (um bom exemplo disso é o fato pitoresco de Tales ter caído em um poço sob seus pés enquanto olhava para o céu). Ora, os 'Sophoi' eram os que estavam mais interessados com os assuntos externos à vida diária (com as questões eternas e imutáveis) e, por isso, não possuíam aquele tipo de sabedoria prática, que Aristóteles chamou de 'Phronésis'.
O próprio Aristóteles concordava com essa opinião pública: tanto Tales quanto Anaxágoras eram sábios, mas não 'Phronimos'(homens de compreensão). A preocupação dos 'Sophoi' era com a verdade das coisa, com aquilo que é eterno e, portanto, não-humano. Conseqüentemente, eram vistos como inúteis para a 'polis'. Platão não discordava dessa opinião, mas recusava aceitar que isso tornasse os filósofos inúteis para a política". (p.59)
"A condenação de Sócrates fez com que Platão empreendesse uma busca de padrões absolutos, sem os quais o domínio político permanece sempre relativo e instável. Tais padrões tornaram-se, daí em diante, o impulso primordial de sua filosofia política, influenciando de forma decisiva até mesmo a doutrina puramente filosófica das idéias. Relacionada com a busca desses padrões está a desconfiança em relação à persuasão e, intimamente ligada a essa desconfiança, a condenação da 'doxa'. O conceito de verdade elaborado por Platão está em proporção inversa à noção de 'doxa', tão importante na Grécia. A distância entre opinião e verdade tornou-se então o abismo que viria a separar os filósofos dos homens comuns". (p. 60)
Se a 'doxa' é a própria expressão da consciência da pessoa, pois a formulação em palavras daquilo que me parece é a formulação em palavras da sentença emitida pela consciência humana, como foi possível a condenação de Sócrates ? Como explicamos isto a partir da Teoria da Consciência e Liberdade ?
O primeiro equívoco dos gregos foi confundir opinião (verdade subjetiva) com verdade (verdade objetiva), foi confundir a sentença emitida pela consciência, a 'dokei moi', com a verdade oriunda objetivamente das coisas e dos fatos.
A ordem emitida pela consciência do indivíduo é a vontade. E esta ordem, decisão (uma sentença) interna, própria do indivíduo, é gerada por conhecimentos e informações que ele recebeu ao longo do tempo e de sua vida, assim como dos valores que aprendeu, dos costumes de onde vive, etc. Por isso, esta ordem (sentença), a vontade, é uma verdade subjetiva.
A verdade objetiva advém das coisas e dos fatos independentemente da interferência humana, sendo comum a todos os seres humanos. São os dados 'in natura'. Por exemplo, o sol nasce. A planta cresce. O tempo passa. A pedra cai, etc.
A razão e a ciência são especializadas na produção de verdades objetivas. Verdades objetivas que também são captadas pela consciência humana e que, muitas vezes, não são tão objetivas, mas eram verdades subjetivas. Por exemplo, 'o sol gira ao redor da terra' já foi uma verdade objetiva. Porém um dia, Copérnico mostrou que esta verdade, tida como objetiva, era, na verdade, uma verdade subjetiva do Ptolomeu. A verdade objetiva era 'a terra gira ao redor do sol'.
A Teoria da Consciência e Liberdade define a Liberdade como poder do indivíduo de agir de acordo com a sua própria consciência, ou seja, agir de acordo com a ordem emanada da consciência. Esta ordem é formada pela consciência por meio de processos mentais (pensamentos) que analisam informações e conhecimentos.
Portanto, a Liberdade humana deriva de uma verdade subjetiva. Contudo, sendo a Liberdade um poder, e o poder é uma coisa objetiva, é uma verdade objetiva. Portanto, a Liberdade humana é uma verdade objetiva (um poder) que executa (põe em prática ou movimenta) uma verdade subjetiva (a sentença da consciência).
A Teoria da Consciência e Liberdade explica, ainda, o motivo pelo qual as pessoas possuem liberdades parecidas ou porque a percepção de liberdade entre os indivíduos é parecida. A resposta é: porque a nossa consciência se desenvolve sobre a mesma base cognitiva. Recebemos as mesmas informações, os mesmos conhecimentos, as mesmas regras, os mesmo costumes, valores, crenças, etc.
Logo, temos os mesmos conjuntos de dados que serão avaliados pelos processos mentais (pensamentos). Contudo, como existem pequenas variações nas cognições e nos pesos dados às informações e conhecimentos, temos liberdades individuais parecidas, mas jamais semelhantes. Cada pessoa tem a sua própria consciência e constrói a sua própria liberdade. Porém, faz isto dentro do mesmo sistema cognitivo social. Portanto, não existem grandes discrepâncias.
Disso decorre que onde há uma diferença acentuada na consciência, devido a diferenças no sistema cognitivo, valores e crenças há uma mudança acentuada na percepção da liberdade. É o caso da liberdade do oriente x a liberdade do ocidente. A liberdade dos cristãos x a liberdade dos muçulmanos x a liberdade dos budista, etc.
Portanto, tudo que incide e afeta a liberdade, incide e afeta a 'doxa'. Mais do que isto, a 'doxa', compreendida como expressão da consciência da pessoa, antecede a liberdade. É uma verdade subjetiva. É uma verdade que varia de pessoa para pessoa e depende das informações e conhecimentos que a pessoa possui e daquilo que ela aprendeu ao longo da vida, suas crenças, seus valores e seus costumes.
Um exemplo evidente disso é um referendo hipotético que podemos fazer sobre um mesmo caso. Um homossexual é levado à Àgora para julgamento. A primeira Àgora é no Irã. A segunda Àgora é no Brasil. E o referendo deve dizer se ele será condenado a morte ou não. As pessoas devem decidir livremente de acordo com a própria consciência. Muito provavelmente, no Irã ele será condenado a morte e, no Brasil, é absolvido e enviado para participar do Big Brother.
O que ocorreu com a 'doxa' ? Não há verdade na 'doxa' ? A resposta é: a verdade da 'doxa' é a verdade da consciência. A verdade da consciência é uma verdade subjetiva. Não é uma verdade objetiva, uma verdade matemática. Por isso a 'doxa', assim como a vontade da maioria, não é o instrumento adequado para emitir decisões onde se exige a existência de uma verdade objetiva.
Portanto, Sócrates foi condenado pela confusão entre a opinião e a verdade. Confusão entre a vontade da maioria e a verdade objetiva. A vontade da maioria é apenas a generalização de uma verdade subjetiva. Isto não a torna uma verdade objetiva. Em tese, a sentença de julgamento de um homem deve se aproximar o máximo possível de uma verdade objetiva. E, para isto, deve-se utilizar técnicas e métodos científicos e racionais. Contudo, se Sócrates tivesse sido julgado por um só Juiz ateniense, ele teria se salvado ?
A razão e a ciência produzem verdades objetivas, informações e conhecimentos, que são matérias-primas na construção da 'doxa'. A minha visão de mundo é construída a partir daquilo que eu sei sobre o mundo. Aquilo que me parece, a sentença da minha consciência, é formada pela análise das informações e dos conhecimentos que internalizei ao longo da minha vida. Informações e conhecimentos que vêm das mais diversas fontes: ciência, razão, religião, etc.
Portanto, os excessos e os desvios da 'doxa' podem ser corrigidos pela ciência e pela razão, com o estabelecimento de verdades objetivas, válidas para todos. Estas verdades objetivas ou convencionadas formam, dentro da consciência individual, os subsistemas. Por exemplo, a consciência coletiva que reúne regras e normas ligadas à estrutura familiar, ao aprendizado familiar, à educação, aos valores individuais, à moral, à ética, etc. É a consciência que se desenvolve nos pequenos grupos, na família, entre os amigos ou em numa pequena comunidade.
Quando a consciência, antes de emitir uma 'doxa', se depara com as normas e regras da consciência coletiva, ela pára e acata a decisão que é aceita e convencionada - por aquele grupo coletivo. Ela acata aquilo que está estabelecido. Logo, a 'doxa' se apresenta formatada pela convenção.
A consciência social é uma generalização, uma ampliação, da consciência coletiva. Enquanto a consciência coletiva estrutura e mantém um grupo pequeno e próximo ao indivíduo, a consciência social estrutura e mantém um grupo amplo, uma coletividade, uma sociedade. Na consciência coletiva os membros do grupo são conhecidos, pois estão próximos. Nesta consciência social os membros do grupo são, em sua maioria, desconhecidos um dos outros, porém estão sujeitos às mesmas normas e regras. Um exemplo disso é o ordenamento jurídico - costumeiro ou o Direito Positivo.
Quando a consciência, antes de emitir uma 'doxa', se depara com as normas e regras da consciência social, ela pára e acata a decisão que foi legitimada pelo grupo social e vale para todos. Por exemplo, uma lei ou um costume da sociedade. Logo, mais uma vez, a 'doxa' se apresenta formatada pela convenção.
Outro ponto importante é que a 'doxa', verdade subjetiva, caminha para a verdade objetiva, conforme o número daqueles que a detém. O termo 'caminhar' significa que se uma grande maioria vê a mesma coisa, há uma tendência desta coisa ser uma verdade objetiva. Porém, isto é uma tendência que a ciência e a razão irão testar para ver se ela se confirma ou não. A maioria pode estar redondamente enganada. Isto ocorre, por exemplo, quando há uma informação errada na base cognitiva, que leva a um processo analítico errado na consciência, logo, a uma 'doxa' errada. Ilustrativamente, uma gráfica imprime um livro com informações erradas. O livro é usado para uma prova que faz uma pergunta sobre aquela informação errada. O que acontece ? Todos que estudaram por aquele livro irão responder errado a questão, irão fazer comentários errados, etc.
Outro elemento inibidor dos excessos e desvios da 'doxa' é a instituição do Direito Natural. Mas antes disso, é preciso dizer que o Direito é sempre uma condicionante da consciência. Logo, uma esfera inibidora da liberdade. Isso porque a consciência do homem pode contrariar o Direito, pode contrariar as normas vigentes. Logo, o Direito limita e inibe a esfera de consciência. Portanto, inibe e limita a liberdade. Por isso, é válida a frase que diz: "Sempre que nasce um direito, morre uma liberdade". Morre uma liberdade porque uma consciência foi condicionada e os indivíduos não terão mais uma consciência livre naquele assunto. Terão que agir, não de acordo com a própria consciência, mas de acordo com a prescrição da norma que foi criada. A consciência tem que seguir a norma. A liberdade foi condicionada e limitada.
O Direito Natural é um conjunto de normas localizadas fora dos subsistemas, das demais consciências. São normas de rotina da consciência individual que inicializam a própria consciência e a mantém em funcionamento. A melhor ilustração é pensar no Direito Natural como um sistema operacional. Um sistema fundamental que permite o funcionamento de todos os subsistemas. Sem sistema operacional o computador não funciona. Sem Direito Natural, a consciência não tem estabilidade e nem proteção. Logo, o próprio indivíduo é transformado em coisa, perde a sua identidade e a sua individualidade, pois o Direito Natural é a garantia e a proteção da consciência, da identidade e da individualidade.
Portanto, diante de uma norma de Direito Natural a 'doxa' também fica paralisada ou vinculada. Não pode se sobrepor porque são normas essenciais que estão presentes em todas as consciências individuais. Normas que se referem e protegem a consciência e o indivíduo como um todo. E sem estas normas a consciência fica comprometida em seu funcionamento regular. Inclusive a norma fundamental que estabelece: "agir de acordo com a própria consciência" é uma norma do Direito Natural que está na consciência individual de toda pessoa, assim como as normas que protegem a vida humana.
Pulando do Direito Natural para os Direitos Individuais, caímos em uma sinuca de bico entre Direitos Individuais e Direitos Coletivos. Entre a Liberdade Individual, gerada pela Consciência Individual e a Liberdade Política gerada pela Consciência Política ou a Liberdade Coletiva gerada pela Consciência Coletiva. Pode as regras do subsistema sobrepor-se às regras de todo o sistema ?
Os Direitos Coletivos não podem se sobrepor ao Direito Natural, uma vez que esta sobreposição destrói a consciência humana e o próprio homem. Destruindo as partes do sistema, destrói-se o sistema. Portanto, o Direito Natural está acima dos Direitos Coletivos e de todas as demais normas e regras oriundas da própria consciência individual ou das demais consciências.
Os demais direitos individuais, que não são Direitos Naturais, por exemplo, o direito de propriedade, etc; estão sujeitos à gangorra democrática. Isto significa que regras convencionadas pela maioria podem se sobrepor à vontade pessoal, à consciência individual. Nestes casos deve-se buscar o equilíbrio entre a vontade da maioria e a vontade individual, a liberdade da maioria e a liberdade individual, o direito da maioria e o direito individual. Isto é a tal gangorra democrática.
A sociedade moderna, fruto do direito e da democracia, gravita em torno dos limites máximos da liberdade e dos direitos do indivíduo e se desenvolve em meio ao conflito entre os interesses da maioria, garantidos pela liberdade política, e os direitos individuais, ou seja, há duas esferas de interesses e de proteção, de um lado os interesses e a vontade coletiva e de outro o indivíduo como ser humano.
Olhando superficialmente, essa relação parece contraditória, uma vez que a liberdade política, concretizada na democracia e no governo da maioria, é inibida pela esfera dos direitos individuais; ao mesmo tempo, os direitos individuais são instituídos, limitados e garantidos pelo poder da maioria. Essa relação, algumas vezes de conflito, outras de complementação, é o que eu denomino de gangorra democrática, onde de um lado está a liberdade política, os direitos e interesses da coletividade, e do outro, as liberdades e os direitos individuais.
Dessa constatação deriva outras duas características das democracias modernas: o conflito e o debate público. Não existe democracia sem convivência com conflitos, seja entre indivíduos, seja entre o indivíduo e a coletividade; e sua solução através do compromisso e da argumentação, ou de uma combinação de ambos. Portanto, a sociedade democrática atual busca, incessantemente, o ponto de equilíbrio entre o poder governante da maioria e os direitos individuais, ou seja, busca equilibrar a gangorra no ponto médio.
Esse conflito entre liberdades e direitos não é coisa da atualidade, uma vez que foi vislumbrada nas considerações de Benjamin Constant que, em seu célebre discurso intitulado “De la Liberté des anciens comparée à celle des modernes”, comparou a liberdade dos antigos com a liberdade dos modernos.
A liberdade dos antigos, relata Constant, residia na participação dos cidadãos nas decisões públicas, ou seja,
"(…) consistia no exercício coletivo e direto de várias partes da soberania. Consistia em deliberar em praça pública sobre a guerra e sobre a paz, em concluir com estrangeiros tratados e alianças, em votar leis, em pronunciar julgamentos e examinar as contas, os atos e gestões dos magistrados, em fazer comparecer todo o povo, colocá-los sob acusação, condená-los ou absolvê-los; mas ao mesmo tempo que era isso que os antigos chamavam de liberdade, eles admitiam como compatível com essa liberdade coletiva a completa sujeição do indivíduo à autoridade do conjunto."
Percebe-se, portanto, que não existia entre os antigos uma esfera de liberdade do indivíduo protegida por direitos individuais. O poder exercido pelo conjunto dos cidadãos ,na Assembléia, era supremo e não respeitava qualquer limite.
Assim, o objetivo da organização política era assegurar a intervenção dos cidadãos nas decisões, garantir o seu poder, não havendo qualquer obstáculo ou limitação para essas decisões. Logo, havia a supremacia absoluta do coletivo, da vontade da maioria, sobre o individual. Em outras palavras, havia “a submissão completa do indivíduo à autoridade do todo”.
"Não encontrareis entre eles quase nenhum dos privilégios que vemos fazer parte da liberdade entre os modernos. Todas as ações privadas estão sujeitas a severa vigilância. Nada é concedido à independência individual, nem mesmo no que se refere à religião. A faculdade de escolher seu culto, faculdade que consideramos comum e nossos mais preciosos direitos, teria parecido um crime e um sacrilégio para os antigos. Nas coisas que nos parecem mais insignificantes, a autoridade do corpo social interpunha-se e restringia a vontade dos indivíduos." (CONSTANT, 1985).
A condenação do filósofo Sócrates, citada anteriormente, era um disso. Uma condenação que seria completamente impossível nas sociedades democráticas atuais, pois as decisões da maioria não adentram à esfera individual, ou seja, são limitadas e não autorizadas a violar liberdades e direitos individuais, principalmente os Direitos Naturais, como a vida, etc.
Portanto, de acordo com Constant, entre os antigos, o indivíduo, quase sempre soberano nas questões públicas, é escravo em todos seus assuntos privados. Como cidadão, ele decide sobre a paz e a guerra; como particular, permanece limitado, observado, reprimido em todos seus movimentos; como porção do corpo coletivo, ele interroga, destitui, condena, despoja, exila, atinge mortalmente seus magistrados ou seus superiores; como sujeito ao corpo coletivo, ele pode, por sua vez, ser privado de sua posição, despojado de suas honrarias, banido, condenado, pela vontade arbitrária do todo ao qual pertence.
Entre os modernos, assinala Constant, ao contrário, o indivíduo, independente na vida privada, mesmo nos Estados mais livres, só é soberano em aparência. Sua soberania é restrita, quase sempre interrompida; e, se, em épocas determinadas, mas raras, durante as quais ainda é cercado de precauções e impedimentos, ele exerce essa soberania, é sempre para abdicar a ela.
Em outras palavras, a plenitude da liberdade política dos antigos foi limitada e impedida de acessar o plano das liberdades individuais. E, para que não existam dúvidas sobre essas limitações e impedimentos especificou-se e firmou-se, em constituições formais e tratados internacionais, as liberdades e os direitos individuais. Assim, o governo democrático é da maioria, mas a maioria não pode tudo. Tem que respeitar os direitos individuais e os direitos das minorias.
Também foi essa limitação, imposta pelos direitos individuais, que invalidou o argumento de Platão de que a democracia caminhava, devido ao excesso de liberdade, para a auto-destruição.
A democracia, segundo Platão, era resultado da transformação da forma oligárquica de governo e a sua principal característica era a liberdade. Assim, os homens que viviam sob esse regime eram livres e prevalecia a liberdade de expressão na cidade. Contudo, ele não considerava a liberdade uma virtude da democracia, pois a identificava com licença, com a possibilidade de cada pessoa fazer o que quisesse. Nesse sentido, para apreciar todos os prazeres da vida o homem democrata necessitava de ampla liberdade e a aproveitava de modo desregrado.
Na visão de Platão a liberdade que caracterizava a democracia não gerava apenas homens democratas de modo desregrado, mas deixava espaço também para que cada um organizasse a sua vida como lhe aprouvesse, fosse de um modo aristocrático, oligárquico, democrático ou tirânico. Assim, o excesso de liberdade, que cada um tinha de organizar a sua própria vida da maneira que melhor lhe aprouvesse, terminaria em opressão para todos. E, do mesmo modo que nas outras formas de governo, a democracia seria dissolvida em função do excesso de sua principal característica, isto é, seria dissolvida pelo excesso de liberdade e pela negligência das pessoas. Transformando-se, então, em tirania. Para Platão, muita liberdade transformava-se em nada, a não ser muita escravidão para os homens privados e para a cidade.
Segundo Platão, a democracia era a forma de governo em que os pobres governavam. Como o número de pobres era muito grande, então, a democracia era o governo de muitos e tinha como principal característica a liberdade. A prevalência desta aliada ao governo de muitos conduziam a um regime em que as leis não eram valorizadas, já que constituíam obstáculos para o exercício da liberdade. Então, o excesso de liberdade fazia com que a democracia se degenerasse em uma tirania, que era a pior de todas as formas de governo.
O encadeamento lógico de Platão foi quebrado pelo advento dos direitos individuais que, ao mesmo tempo em que limitaram o poder da maioria, oriundo da liberdade política, sobre o indivíduo; também impuseram uma barreira ao excesso de liberdade individual. O Direito limitou a consciência, logo limitou a liberdade. Esta limitação, imposta tanto à liberdade do ente coletivo, quanto ao indivíduo, impediu o surgimento das conseqüências do excesso de liberdade em uma sociedade democrática.
Contudo, se escapamos da maldição de Platão por uma porta, nos deparamos com outra maldição: a corrupção das instituições públicas controlada por uma minoria de servidores públicos e de políticos profissionais, especializados em enganar a maioria nas eleições e camuflar os verdadeiros interesses que defendem: os interesses dos grupos econômicos dominantes. Resumindo, a maldição é a mesma, ou seja, a democracia se degenera em uma tirania.
Enfim, na atualidade, a liberdade política e os direitos individuais formam uma gangorra democrática, onde cada um dos lados da gangorra é constituído por uma dessas instituições. Assim, o aumento de um dos lados é acompanhado da respectiva diminuição do outro, ou seja, aumentando o poder da maioria ocorre uma redução da liberdade individual e vice-versa. Contudo, assim como a gangorra, o aumento ou a diminuição de cada um dos lados possui um teto e um piso, ou seja, o acréscimo ou decréscimo de poder, seja da maioria ou individual, ocorre dentro de uma faixa de tolerância, porém nunca fora dela. Com isso protege-se a coletividade do excesso de liberdades e direitos individuais, assim como protege-se o indivíduo do excesso de poder da maioria.
O teto e o piso da gangorra democrática são dados pelas constituições e pelos tratados internacionais de direitos humanos que determinam até onde vai o poder da maioria e quais são os direitos individuais invioláveis, ou seja, os Direitos Naturais positivados.
Portanto, a 'doxa' é uma das formas expressão da consciência individual. Era a formulação em fala daquilo que 'dokei moi', daquilo que me parece. A formulação em fala daquilo que me parece é a formulação em fala da sentença emitida pela minha consciência. Já a 'vida na polis' era o lugar onde o indivíduo aparecia para revelar a sua consciência, para mostrar a sentença que a sua consciência proferiu em determinado caso, ou seja, a sua opinião. A 'vida na polis' era o espaço de revelação da consciência individual. E a internet é um espaço, existem muitos outros, em que isto acontece, ou seja, em revelamos a nossa consciência, revelamos a nossa opinião.
A condenação de Sócrates, pelos diversos 'dokei moi' dos atenienses foi um equívoco ocasionado pela confusão entre opinião (verdade subjetiva) com verdade (verdade objetiva), foi confundir a sentença emitida pela consciência, a 'dokei moi', com a verdade oriunda objetivamente das coisas e dos fatos. A sentença de julgamento de um homem deve se aproximar o máximo possível de uma verdade objetiva.
Atualmente, a 'doxa' sujeita-se a uma série de correções que visam eliminar seus excessos e desvios. Essas correções derivam da razão e da ciência, de travas colocadas pelos diversos subsistemas da consciência individual, pelo Direito Natural e pelos Direitos Individuais. Correções que bloqueiam o poder da coletividade sobre certos aspectos dos seres humanos. A relação direitos individuais x direitos coletivos formas uma gangorra democrática que busca sempre o equilíbrio.
Além disso, estas travas que eliminam os excessos e os desvios da 'doxa' também invalidaram o argumento de Platão de que o excesso de liberdade destruiria a democracia. Contudo, a democracia atual ainda corre sérios riscos, podendo degenerar-se para uma tirania, devido à corrupção das instituições democráticas.
Neste ponto, eu acabo de estabelecer todas as premissas necessárias para o próximo texto, que é a Democracia Direta na atualidade.
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