Fragmentos da Teoria Consciência e Liberdade
(...) E é justamente nesse ponto que entra a razão de ser dessa teoria, ou seja, a novidade totalitária. O totalitarismo faz uma coisa que nenhum outro sistema tinha conseguido fazer antes. E que coisa é essa ? O totalitarismo retirou a consciência dos indivíduos. Logo, retirou completamente a liberdade dos Seres Humanos que pertenciam àquele sistema. Todos os movimentos anteriores atingiam o indivíduo criando regras e normas que condicionavam as consciências e limitavam a liberdade, mas nenhum sistema jamais havia retirado a consciência das pessoas. Retirando a consciência, ele retirou completamente a liberdade dos indivíduos.
Mas o totalitarismo foi além, muito além disso, ele não só retirou a consciência, mas a substituiu por outra consciência: a consciência do sistema totalitário. As pessoas perderam a sua consciência individual, logo, perderam a sua liberdade individual; e receberam, em troca, a consciência do sistema, logo, passaram a ter a liberdade do sistema (poder de agir de acordo com a consciência do sistema). A consciência do sistema gera a liberdade do sistema.
Mas o que exatamente quer dizer perda de consciência, seguida de substituição de consciência ? Em termos excessivamente genéricos é uma espécie de lavagem cerebral em massa. Retira a consciência do indivíduo, fazendo-o perder a sua identidade e individualidade, imergindo-o em uma multidão de iguais.
Por isso, em um sistema totalitário a mídia, a propaganda e o terror são tão importantes. Por isso, o vazio de pensamento, a mediocridade e a indiferença são essenciais para o sucesso inicial do sistema. São características comuns no homem da massa, características que facilitam e garantem o sucesso de substituição de consciência dos indivíduos. Pessoas com tais características tem suas consciências facilmente arrancada e substituída por outra. São pessoas dóceis, facilmente controladas e dominadas. Pessoas que não percebem que seus pensamentos são pensamentos do sistema, que suas idéias e ideais são idéias e ideais do sistema, que suas ações são ações do sistema. A consciência que possuem é a consciência do sistema. Pensam igual o sistema. Falam igual o sistema. Agem igual o sistema. Fazem o que o sistema faz.
A retirada de consciência, assim como a substituição das consciência individuais é muito mais fácil onde existe massa. Isto porque, de acordo com Hannah Arendt:
Os movimentos totalitários são possíveis onde quer que existam massas que, por um motivo ou outro, desenvolveram certo gosto pela organização política. As massas não se unem pela consciência de um interesse comum e falta-lhes aquela específica articulação de classes que se expressa em objetivos determinados, limitados e atingíveis. O termo massa só se aplica quando lidamos com pessoas que, simplesmente devido ao seu número, ou à sua indiferença, ou a uma mistura de ambos, não se podem integrar numa organização profissional ou sindicato de trabalhadores. Potencialmente, as massas existem em qualquer país e constituem a maioria das pessoas neutras e politicamente indiferentes, que nunca se filiam a um partido e raramente exercem o poder de voto. (p. 399)
Percebemos, portanto, que o homem da massa é um homem que não desenvolveu a sua consciência política e pouco exercita a sua consciência social, que também é atrofiada. Logo, não tem um pensamento crítico evidente e pode ser facilmente controlado, seguindo a voz de quem grita mais alto. Este homem, que integra a massa de iguais, é o modelo ideal para a ação da mão invisível do totalitarismo.
É um sistema que não admite questionamentos. Quaisquer questionamentos põe o sistema em risco, podendo romper a estrutura e mostrar as reais intenções e os objetivos da coisa. O todo é visto apenas por quem estrutura e controla o sistema. E o homem da massa não questiona nada, apenas executa as ordens. Logo, é o homem ideal para assumir a função de agente totalitário. É o indivíduo totalitário natural, precisando apenas de treinamento básico para o posto futuro.
O método totalitário de retirada de consciência dos indivíduos, acompanhados pela instalação da consciência dos sistema totalitário em cada pessoa, nas palavras de Hannah Arendt, é a produção/construção de uma massa atomizada e amorfa. A mão totalitária invisível ataca toda a sociedade de uma vez. E o registro mais preciso do uso desse método é descrito, por Hannah Arendt, no Stalinismo:
Desde os tempos antigos, a imposição da igualdade de condições aos governados constituiu um dos principais alvos dos despotismos e das tiranias, mas essa equalização não basta para o governo totalitário, porque deixa ainda intactos certos laços não políticos entre os subjugados, tais como laços de família e de interesses culturais comuns. Se o totalitarismo encarar seriamente as suas pretensões, deve considerar sem desvio a questão em que tem de "acabar de uma vez para sempre com a neutralidade de xadrez", isto é, com a existência autônoma de qualquer espécie de atividade. Os amantes do "xadrez por amor do xadrez", adequadamente comparados pelo seu liquidatário com os amantes da "arte pela arte", ainda não são de maneira absoluta elementos atomizados numa sociedade de massas cuja uniformidade completamente heterogênea constitui uma das condições primárias do totalitarismo.
Do ponto de vista dos governantes totalitários, uma sociedade dedicada ao xadrez por amor ao xadrez é apenas diferentes e menos perigosa em grau do que uma classe de agricultores por amor à agricultura. Hitler definiu muito adequadamente o membro da SS como o novo tipo de homem que em nenhuma circunstância jamais fará qualquer coisa "por ela mesma".
A atomização de massas na sociedade soviética foi realizada através do hábil uso de sucessivos expurgos que invariavelmente precediam uma verdadeira liquidação em grupo. A fim de destruir todos os laços sociais e familiares, os expurgos eram realizados de modo a ameaçar com o mesmo destino o réu e todas as pessoas que privavam com ele, desde os simples conhecidos aos amigos mais íntimos e aos familiares. A conseqüência do singelo estratagema de "culpa por associação" reside no seguinte: logo que um homem é acusado, os seus velhos amigos são transformados imediatamente nos mais implacáveis inimigos; para salvarem a própria pele, oferecem informações e apresentam-se diligentemente com denúncias que corroborem as provas não existentes contra ele; obviamente, esta é a única maneira de comprovar a sua lealdade.
Retrospectivamente, tentarão provar que as suas relações ou a sua amizade com o acusado constituíam apenas pretexto para o espiar ou para o denunciar como sabotador, trotskista, espião estrangeiro ou fascista. Sendo o mérito "aferido pelo número de denúncias feitas por velhos camaradas" , é óbvio que a cautela mais elementar exige que uma pessoa evite todos os contactos íntimos, se possível - não para evitar a descoberta dos pensamentos próprios, mas para eliminar, nos casos quase certos de futuros incômodos, todas as pessoas que possam ter não só um ínfimo interesse em denunciá-la, mas também a necessidade irresistível de provocar a sua ruína simplesmente porque a própria vida do provável denunciante corre perigo.
Em última análise, foi através do desenvolvimento deste estratagema até aos seus mais fantásticos extremos que governantes bolcheviques conseguiram criar uma sociedade atomizada e individualizada, como nunca se viu igual e que eventos ou catástrofes só por si dificilmente poderiam originar. (p. 412-413)
(...) Os movimentos totalitários são organizações maciças de indivíduos atomizados e isolados. Distinguem-se dos outros partidos e movimentos pela exigência de lealdade total, irrestrita, incondicional e inalterável de cada membro individual. Essa exigência é feita pelos líderes dos movimentos totalitários mesmo antes de tomarem o poder e decorre da alegação, já contida na sua ideologia, de que a organização abrangerá, no devido tempo, toda a raça humana. Contudo, onde o governo totalitário não é preparado por um movimento totalitário, o movimento tem de ser organizado depois, e as condições para o seu crescimento têm de ser artificialmente criadas de modo a possibilitar a lealdade total, que é a base psicológica do domínio total. Não se pode esperar essa lealdade a não ser de seres humanos completamente isolados que, desprovidos de outros laços sociais - de família, amizade, camaradagem - só adquirem o sentido de terem lugar neste mundo quando participam de um movimento ou pertencem a um Partido.(p. 414)
Portanto, esta atomização das massas, citada por Hannah Arendt, é um método eficiente para eliminar a consciência individual das pessoas. Este método elimina a consciência individual através da eliminação das partes, das outras consciências que compõem a consciência individual. Primeiro, ataca a consciência política, em seguida a consciência social.
Logo após a consciência coletiva e, por último, assimila a consciência individual como um todo. Ao mesmo que destrói a individualidade da pessoa, a consciência individual, o totalitarismo insere a consciência do sistema totalitário no indivíduo. Na descrição isto aparece no fato dos velhos amigos serem transformados em delatores ou nos mais implacáveis inimigos. Transformados em zumbis que protegem o sistema totalitário detectando e denunciando a existência de pessoas que ainda não foram assimiladas pelo sistema, ou seja, de pessoas que ainda possuem intactas a consciência individual natural.
No rodapé da página 413 desta obra "O Sistema Totalitário", tradução portuguesa de "The origins Totalitarianism", Hannah Arendt cita o relato de Nadiedja Mandelstam que viveu o horror da ação totalitária na URSS e assistiu de perto a mão invisível do sistema totalitário eliminando as consciências, uma por uma, até destruir a consciência principal e a individualidade de cada pessoa:
Ninguém confiava em ninguém, e cada conhecido era um possível informador da polícia. Às vezes, parecia que todo o país estava a sofrer de mania de perseguição - uma doença de que ainda hoje não estamos curados. A nossa aflição não era sem fundamentos: sentíamos-nos como se estivéssemos constantemente expostos a uma câmara de raios-X, pois a espionagem mútua era o principal instrumento de controle do Estado.
"Não há que ter medo", havia dito Stálin, "é uma tarefa como todas as outras". Nas escolas, um sistema de "autogoverno" na sala de aula, com monitores e representantes do Komsomol, possibilitava aos professores extrair dos alunos as informações de que necessitavam. Os estudantes tinham ordem de espiar os professores.
(...) Tudo isto era parte da nossa vida diária, e acontecia numa vasta escala e afetava a todos indiscriminadamente. Cada família reexaminava constantemente o seu círculo de relações, procurando determinar quais eram os provocadores, os informadores e os traidores. Depois de 1937, as pessoas simplesmente deixaram de se encontrar umas com as outras: a polícia secreta havia atingido o seu objetivo final. Além de garantir a existência de um constante fluxo de informações, a polícia secreta havia isolado completamente os indivíduos.
Ao tomar conhecimento da última prisão, nunca perguntávamos: "Por que ele foi preso ?" Mas nós éramos uma exceção. Para muita gente aturdida pelo medo, fazer essa pergunta era um modo de alimentar alguma esperança: se os outros estavam a ser presos por algum motivo, então eles não seriam presos porque nada haviam feito de errado.
Cada um procurava encontrar um motivo mais engenhoso que o outro para justificar essas prisões: "Bom, ela é contrabandista mesmo, você sabe"; "não se pode negar que ele foi além dos limites"; "eu mesmo ouvi quando ele disse..." Ou então "não se podia esperar outra coisa - aquele sujeito não presta"; "sempre achei que havia algo errado nele"; "ele não é um de nós". Isto era motivo suficiente para prender e destruir uma pessoa: "não é um de nós", "fala demais", "é mau sujeito".
Estas afirmações nada mais eram que variações de uma cantiga que havíamos escutado pela primeira vez em 1917. A opinião pública e a polícia inventavam sem cessar novas variações mais ilustrativas, alimentando o fogo sem o qual não há fumo. Por isto, no nosso círculo era proibido fazer a pergunta: "porque foi ele preso ?" " Por que ?" exclamava Akhmatova, indignada, sempre que algum de nós, contagiado pelo clima reinante à nossa volta, fazia essa pergunta "Você já devia saber há muito tempo que as pessoas são presas por nada !" (Nadiedja Mandelstam).
Olhando para Eichmann, vemos que ele tinha vontade, que ele seguia a sua vontade, mas ele não era livre, pois a sua consciência estava contaminada pelo nazismo. Os pensamentos que circulavam na consciência de Eichmann e que emitia ordens, formando a sua vontade, eram pensamentos do sistema totalitário. Logo, a liberdade de Eichmann era a liberdade do sistema totalitário. Isto porque a vontade dele era formada por uma consciência movida por informações e conhecimentos introjetados pelo movimento nazista. A consciência de Eichmann era a consciência do sistema, pois os pensamentos de Eichmann eram sentenças prontas, formulas prontas emitidas pelo nazismo. Eichmann não questiona as sentenças e nem as fórmulas. Não processava informações e nem os conhecimentos. Apenas executava as ordens originadas.
Eichmann chama este comportamento de obediência cadavérica (Kadavergehorsam). Isto é contado por Hannah Arendt na obra Eichmann em Jerusalém:
Assim sendo, eram muitas as oportunidades de Eichmann se sentir como Pôncios Pilatos, e à medida que passavam os meses e os anos, ele perdeu a necessidade de sentir fosse o que fosse. Era assim que as coisas eram, essa era a nova lei da terra, baseada nas ordens do Führer; tanto quanto podia ver, seus atos eram os de um cidadão respeitador das leis. Ele cumpria o seu dever, como repetiu insistentemente à polícia e à corte; ele não só obedecia ordens, ele também obedecia à lei. (...)
Como além de cumprir aquilo que ele concebia como deveres de um cidadão respeitador das leis, ele também agia sob ordens - sempre o cuidado de estar "coberto" -, ele acabou completamente confuso e terminou frisando alternativamente as virtudes e os vícios da obediência cega, ou a "obediência cadavérica" (kadavergehorsam), como ele próprio a chamou. (p. 152)
E como dissemos anteriormente, aceitar sentenças prontas significa não processar nada, apenas executar aquilo que veio pronto. Este é o truque do sistema: introjetar sentenças prontas nos indivíduos que integram o sistema. Por isso, fala-se em vazio de pensamento. Vazio de pensamento de um ser humano normal. Porém consciência repleta de pensamentos do sistema totalitário: anti-semitismo, extermínio, ordens do Führer, câmara de gás, etc.
Outra passagem de Hannah Arendt que evidencia a retirada de consciência individual está na p. 394-395 da obra "O Sistema Totalitário", tradução portuguesa de "The origins Totalitarianism" e diz:
Mas o que é desconcertante no sucesso do totalitarismo é o verdadeiro altruísmo dos seus adeptos. É compreensível que as convicções de um nazi ou bolchevista não sejam abaladas por crimes cometidos contra os inimigos do movimento, mas o facto espantoso é que ele não vacila quando o monstro começa a devorar os próprios filhos, e nem mesmo quando ele próprio se torna vítima da opressão, quando é incriminado e condenado, quando é expulso do partido e enviado para um campo de concentração ou de trabalhos forçados. Pelo contrário: para assombro de todo o mundo civilizado, estará até disposto a colaborar com a própria condenação e tramar a própria sentença de morte, contanto que o seu "status" como membro do movimento permaneça intacto.
Seria ingênuo pensar que essa obstinada convicção, que sobrevive a todas as experiências reais e anula todo o interesse pessoal, seja mera expressão de idealismo ardente. O idealismo, tolo ou heróico, nasce da decisão e da convicção individuais, mas forja-se na experiência. O fanatismo dos movimentos totalitários, ao contrário das demais formas de idealismo, desaparece no momento em que o movimento deixa em apuros os seus seguidores fanáticos, matando neles qualquer resto de convicção que possa ter sobrevivido ao colapso do próprio movimento.
Mas, dentro da estrutura organizacional do movimento, enquanto ele permanece inteiro, os membros fanatizados são inatingíveis pela experiência e pelo argumento; a identificação com o movimento e o conformismo total parece ter destruído a própria capacidade de sentir, mesmo que seja algo tão extremo como a tortura ou o medo da morte. (p. 394-395)
Mas o totalitarismo foi além, muito além disso, ele não só retirou a consciência, mas a substituiu por outra consciência: a consciência do sistema totalitário. As pessoas perderam a sua consciência individual, logo, perderam a sua liberdade individual; e receberam, em troca, a consciência do sistema, logo, passaram a ter a liberdade do sistema (poder de agir de acordo com a consciência do sistema). A consciência do sistema gera a liberdade do sistema.
Mas o que exatamente quer dizer perda de consciência, seguida de substituição de consciência ? Em termos excessivamente genéricos é uma espécie de lavagem cerebral em massa. Retira a consciência do indivíduo, fazendo-o perder a sua identidade e individualidade, imergindo-o em uma multidão de iguais.
Por isso, em um sistema totalitário a mídia, a propaganda e o terror são tão importantes. Por isso, o vazio de pensamento, a mediocridade e a indiferença são essenciais para o sucesso inicial do sistema. São características comuns no homem da massa, características que facilitam e garantem o sucesso de substituição de consciência dos indivíduos. Pessoas com tais características tem suas consciências facilmente arrancada e substituída por outra. São pessoas dóceis, facilmente controladas e dominadas. Pessoas que não percebem que seus pensamentos são pensamentos do sistema, que suas idéias e ideais são idéias e ideais do sistema, que suas ações são ações do sistema. A consciência que possuem é a consciência do sistema. Pensam igual o sistema. Falam igual o sistema. Agem igual o sistema. Fazem o que o sistema faz.
A retirada de consciência, assim como a substituição das consciência individuais é muito mais fácil onde existe massa. Isto porque, de acordo com Hannah Arendt:
Os movimentos totalitários são possíveis onde quer que existam massas que, por um motivo ou outro, desenvolveram certo gosto pela organização política. As massas não se unem pela consciência de um interesse comum e falta-lhes aquela específica articulação de classes que se expressa em objetivos determinados, limitados e atingíveis. O termo massa só se aplica quando lidamos com pessoas que, simplesmente devido ao seu número, ou à sua indiferença, ou a uma mistura de ambos, não se podem integrar numa organização profissional ou sindicato de trabalhadores. Potencialmente, as massas existem em qualquer país e constituem a maioria das pessoas neutras e politicamente indiferentes, que nunca se filiam a um partido e raramente exercem o poder de voto. (p. 399)
Percebemos, portanto, que o homem da massa é um homem que não desenvolveu a sua consciência política e pouco exercita a sua consciência social, que também é atrofiada. Logo, não tem um pensamento crítico evidente e pode ser facilmente controlado, seguindo a voz de quem grita mais alto. Este homem, que integra a massa de iguais, é o modelo ideal para a ação da mão invisível do totalitarismo.
É um sistema que não admite questionamentos. Quaisquer questionamentos põe o sistema em risco, podendo romper a estrutura e mostrar as reais intenções e os objetivos da coisa. O todo é visto apenas por quem estrutura e controla o sistema. E o homem da massa não questiona nada, apenas executa as ordens. Logo, é o homem ideal para assumir a função de agente totalitário. É o indivíduo totalitário natural, precisando apenas de treinamento básico para o posto futuro.
O método totalitário de retirada de consciência dos indivíduos, acompanhados pela instalação da consciência dos sistema totalitário em cada pessoa, nas palavras de Hannah Arendt, é a produção/construção de uma massa atomizada e amorfa. A mão totalitária invisível ataca toda a sociedade de uma vez. E o registro mais preciso do uso desse método é descrito, por Hannah Arendt, no Stalinismo:
Desde os tempos antigos, a imposição da igualdade de condições aos governados constituiu um dos principais alvos dos despotismos e das tiranias, mas essa equalização não basta para o governo totalitário, porque deixa ainda intactos certos laços não políticos entre os subjugados, tais como laços de família e de interesses culturais comuns. Se o totalitarismo encarar seriamente as suas pretensões, deve considerar sem desvio a questão em que tem de "acabar de uma vez para sempre com a neutralidade de xadrez", isto é, com a existência autônoma de qualquer espécie de atividade. Os amantes do "xadrez por amor do xadrez", adequadamente comparados pelo seu liquidatário com os amantes da "arte pela arte", ainda não são de maneira absoluta elementos atomizados numa sociedade de massas cuja uniformidade completamente heterogênea constitui uma das condições primárias do totalitarismo.
Do ponto de vista dos governantes totalitários, uma sociedade dedicada ao xadrez por amor ao xadrez é apenas diferentes e menos perigosa em grau do que uma classe de agricultores por amor à agricultura. Hitler definiu muito adequadamente o membro da SS como o novo tipo de homem que em nenhuma circunstância jamais fará qualquer coisa "por ela mesma".
A atomização de massas na sociedade soviética foi realizada através do hábil uso de sucessivos expurgos que invariavelmente precediam uma verdadeira liquidação em grupo. A fim de destruir todos os laços sociais e familiares, os expurgos eram realizados de modo a ameaçar com o mesmo destino o réu e todas as pessoas que privavam com ele, desde os simples conhecidos aos amigos mais íntimos e aos familiares. A conseqüência do singelo estratagema de "culpa por associação" reside no seguinte: logo que um homem é acusado, os seus velhos amigos são transformados imediatamente nos mais implacáveis inimigos; para salvarem a própria pele, oferecem informações e apresentam-se diligentemente com denúncias que corroborem as provas não existentes contra ele; obviamente, esta é a única maneira de comprovar a sua lealdade.
Retrospectivamente, tentarão provar que as suas relações ou a sua amizade com o acusado constituíam apenas pretexto para o espiar ou para o denunciar como sabotador, trotskista, espião estrangeiro ou fascista. Sendo o mérito "aferido pelo número de denúncias feitas por velhos camaradas" , é óbvio que a cautela mais elementar exige que uma pessoa evite todos os contactos íntimos, se possível - não para evitar a descoberta dos pensamentos próprios, mas para eliminar, nos casos quase certos de futuros incômodos, todas as pessoas que possam ter não só um ínfimo interesse em denunciá-la, mas também a necessidade irresistível de provocar a sua ruína simplesmente porque a própria vida do provável denunciante corre perigo.
Em última análise, foi através do desenvolvimento deste estratagema até aos seus mais fantásticos extremos que governantes bolcheviques conseguiram criar uma sociedade atomizada e individualizada, como nunca se viu igual e que eventos ou catástrofes só por si dificilmente poderiam originar. (p. 412-413)
(...) Os movimentos totalitários são organizações maciças de indivíduos atomizados e isolados. Distinguem-se dos outros partidos e movimentos pela exigência de lealdade total, irrestrita, incondicional e inalterável de cada membro individual. Essa exigência é feita pelos líderes dos movimentos totalitários mesmo antes de tomarem o poder e decorre da alegação, já contida na sua ideologia, de que a organização abrangerá, no devido tempo, toda a raça humana. Contudo, onde o governo totalitário não é preparado por um movimento totalitário, o movimento tem de ser organizado depois, e as condições para o seu crescimento têm de ser artificialmente criadas de modo a possibilitar a lealdade total, que é a base psicológica do domínio total. Não se pode esperar essa lealdade a não ser de seres humanos completamente isolados que, desprovidos de outros laços sociais - de família, amizade, camaradagem - só adquirem o sentido de terem lugar neste mundo quando participam de um movimento ou pertencem a um Partido.(p. 414)
Portanto, esta atomização das massas, citada por Hannah Arendt, é um método eficiente para eliminar a consciência individual das pessoas. Este método elimina a consciência individual através da eliminação das partes, das outras consciências que compõem a consciência individual. Primeiro, ataca a consciência política, em seguida a consciência social.
Logo após a consciência coletiva e, por último, assimila a consciência individual como um todo. Ao mesmo que destrói a individualidade da pessoa, a consciência individual, o totalitarismo insere a consciência do sistema totalitário no indivíduo. Na descrição isto aparece no fato dos velhos amigos serem transformados em delatores ou nos mais implacáveis inimigos. Transformados em zumbis que protegem o sistema totalitário detectando e denunciando a existência de pessoas que ainda não foram assimiladas pelo sistema, ou seja, de pessoas que ainda possuem intactas a consciência individual natural.
No rodapé da página 413 desta obra "O Sistema Totalitário", tradução portuguesa de "The origins Totalitarianism", Hannah Arendt cita o relato de Nadiedja Mandelstam que viveu o horror da ação totalitária na URSS e assistiu de perto a mão invisível do sistema totalitário eliminando as consciências, uma por uma, até destruir a consciência principal e a individualidade de cada pessoa:
Ninguém confiava em ninguém, e cada conhecido era um possível informador da polícia. Às vezes, parecia que todo o país estava a sofrer de mania de perseguição - uma doença de que ainda hoje não estamos curados. A nossa aflição não era sem fundamentos: sentíamos-nos como se estivéssemos constantemente expostos a uma câmara de raios-X, pois a espionagem mútua era o principal instrumento de controle do Estado.
"Não há que ter medo", havia dito Stálin, "é uma tarefa como todas as outras". Nas escolas, um sistema de "autogoverno" na sala de aula, com monitores e representantes do Komsomol, possibilitava aos professores extrair dos alunos as informações de que necessitavam. Os estudantes tinham ordem de espiar os professores.
(...) Tudo isto era parte da nossa vida diária, e acontecia numa vasta escala e afetava a todos indiscriminadamente. Cada família reexaminava constantemente o seu círculo de relações, procurando determinar quais eram os provocadores, os informadores e os traidores. Depois de 1937, as pessoas simplesmente deixaram de se encontrar umas com as outras: a polícia secreta havia atingido o seu objetivo final. Além de garantir a existência de um constante fluxo de informações, a polícia secreta havia isolado completamente os indivíduos.
Ao tomar conhecimento da última prisão, nunca perguntávamos: "Por que ele foi preso ?" Mas nós éramos uma exceção. Para muita gente aturdida pelo medo, fazer essa pergunta era um modo de alimentar alguma esperança: se os outros estavam a ser presos por algum motivo, então eles não seriam presos porque nada haviam feito de errado.
Cada um procurava encontrar um motivo mais engenhoso que o outro para justificar essas prisões: "Bom, ela é contrabandista mesmo, você sabe"; "não se pode negar que ele foi além dos limites"; "eu mesmo ouvi quando ele disse..." Ou então "não se podia esperar outra coisa - aquele sujeito não presta"; "sempre achei que havia algo errado nele"; "ele não é um de nós". Isto era motivo suficiente para prender e destruir uma pessoa: "não é um de nós", "fala demais", "é mau sujeito".
Estas afirmações nada mais eram que variações de uma cantiga que havíamos escutado pela primeira vez em 1917. A opinião pública e a polícia inventavam sem cessar novas variações mais ilustrativas, alimentando o fogo sem o qual não há fumo. Por isto, no nosso círculo era proibido fazer a pergunta: "porque foi ele preso ?" " Por que ?" exclamava Akhmatova, indignada, sempre que algum de nós, contagiado pelo clima reinante à nossa volta, fazia essa pergunta "Você já devia saber há muito tempo que as pessoas são presas por nada !" (Nadiedja Mandelstam).
Olhando para Eichmann, vemos que ele tinha vontade, que ele seguia a sua vontade, mas ele não era livre, pois a sua consciência estava contaminada pelo nazismo. Os pensamentos que circulavam na consciência de Eichmann e que emitia ordens, formando a sua vontade, eram pensamentos do sistema totalitário. Logo, a liberdade de Eichmann era a liberdade do sistema totalitário. Isto porque a vontade dele era formada por uma consciência movida por informações e conhecimentos introjetados pelo movimento nazista. A consciência de Eichmann era a consciência do sistema, pois os pensamentos de Eichmann eram sentenças prontas, formulas prontas emitidas pelo nazismo. Eichmann não questiona as sentenças e nem as fórmulas. Não processava informações e nem os conhecimentos. Apenas executava as ordens originadas.
Eichmann chama este comportamento de obediência cadavérica (Kadavergehorsam). Isto é contado por Hannah Arendt na obra Eichmann em Jerusalém:
Assim sendo, eram muitas as oportunidades de Eichmann se sentir como Pôncios Pilatos, e à medida que passavam os meses e os anos, ele perdeu a necessidade de sentir fosse o que fosse. Era assim que as coisas eram, essa era a nova lei da terra, baseada nas ordens do Führer; tanto quanto podia ver, seus atos eram os de um cidadão respeitador das leis. Ele cumpria o seu dever, como repetiu insistentemente à polícia e à corte; ele não só obedecia ordens, ele também obedecia à lei. (...)
Como além de cumprir aquilo que ele concebia como deveres de um cidadão respeitador das leis, ele também agia sob ordens - sempre o cuidado de estar "coberto" -, ele acabou completamente confuso e terminou frisando alternativamente as virtudes e os vícios da obediência cega, ou a "obediência cadavérica" (kadavergehorsam), como ele próprio a chamou. (p. 152)
E como dissemos anteriormente, aceitar sentenças prontas significa não processar nada, apenas executar aquilo que veio pronto. Este é o truque do sistema: introjetar sentenças prontas nos indivíduos que integram o sistema. Por isso, fala-se em vazio de pensamento. Vazio de pensamento de um ser humano normal. Porém consciência repleta de pensamentos do sistema totalitário: anti-semitismo, extermínio, ordens do Führer, câmara de gás, etc.
Outra passagem de Hannah Arendt que evidencia a retirada de consciência individual está na p. 394-395 da obra "O Sistema Totalitário", tradução portuguesa de "The origins Totalitarianism" e diz:
Mas o que é desconcertante no sucesso do totalitarismo é o verdadeiro altruísmo dos seus adeptos. É compreensível que as convicções de um nazi ou bolchevista não sejam abaladas por crimes cometidos contra os inimigos do movimento, mas o facto espantoso é que ele não vacila quando o monstro começa a devorar os próprios filhos, e nem mesmo quando ele próprio se torna vítima da opressão, quando é incriminado e condenado, quando é expulso do partido e enviado para um campo de concentração ou de trabalhos forçados. Pelo contrário: para assombro de todo o mundo civilizado, estará até disposto a colaborar com a própria condenação e tramar a própria sentença de morte, contanto que o seu "status" como membro do movimento permaneça intacto.
Seria ingênuo pensar que essa obstinada convicção, que sobrevive a todas as experiências reais e anula todo o interesse pessoal, seja mera expressão de idealismo ardente. O idealismo, tolo ou heróico, nasce da decisão e da convicção individuais, mas forja-se na experiência. O fanatismo dos movimentos totalitários, ao contrário das demais formas de idealismo, desaparece no momento em que o movimento deixa em apuros os seus seguidores fanáticos, matando neles qualquer resto de convicção que possa ter sobrevivido ao colapso do próprio movimento.
Mas, dentro da estrutura organizacional do movimento, enquanto ele permanece inteiro, os membros fanatizados são inatingíveis pela experiência e pelo argumento; a identificação com o movimento e o conformismo total parece ter destruído a própria capacidade de sentir, mesmo que seja algo tão extremo como a tortura ou o medo da morte. (p. 394-395)
Nenhum comentário:
Postar um comentário